Quando recebeu o diagnóstico de câncer de mama, a fotógrafa Gabi Mattiello sentiu o corpo ser sugado por um buraco no chão. Foram 15 sessões de quimioterapia, 19 de radioterapia e uma cirurgia para retirar o tumor, que era agressivo. Na metade do tratamento, em um momento de introspecção no quintal de casa em Cuiabá, Gabi decidiu que precisava tirar do plano das ideias o sonho de viajar em um motorhome.
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“Sou mochileira há 12 anos, desde criança sempre tive um desejo muito grande de viajar em um motorhome. Se a gente não toma determinadas situações na vida, ela toma por nós, então a vida foi me empurrando para outras ocasiões. Era meu sonho de consumo, mas não estava fazendo nada por ele”.
O desejo se reacendeu no coração de Gabi e foi forte o suficiente para superar algumas questões que antes eram barreiras, como a falta de quantias grandes de dinheiro para transformar um carro em motorhome.
Quando recebeu de uma das irmãs o anúncio de um micro-ônibus de 22 anos à venda em São Paulo (SP), decidiu que tentaria, pelo menos, negociar com o proprietário. Em junho, Gabi viajou para São Paulo para buscar o micro-ônibus. Foi quando ela teve a primeira experiência de como seria a vida na estrada, já que voltou para Cuiabá dirigindo o veículo.
“Aconteceu de tudo nessa viagem. Estragou, furou pneu, descobri problema quando achei que ele estava sem combustível. Era para ser uma viagem de um dia e durou dois. Agora a Vida está aqui. Cheguei em Cuiabá e achei que estava tudo bem, mas estragou o alternador, depois a barra de direção… E ela continua na oficina”.
Em junho, Gabi viajou para São Paulo (SP) para buscar o micro-ônibus e enfrentou os primeiros perrengues da vida na estrada. (Foto: Arquivo pessoal)
Por conta de um problema na bomba injetora de combustível, Gabi vai precisar pagar R$ 8 mil para consertar o micro-ônibus. Apaixonada por assistir o sol se pôr, a fotógrafa decidiu transformar algumas de suas fotos em estampas de lenços e canecas com o projeto “Entardecer”. Parte do dinheiro das vendas é doada para a Associação de Apoio aos Pacientes Oncológicos de Cuiabá (AAPOC).
“Durante o tratamento eu tive o apoio maravilhoso da AAPOC. São duas mulheres sensacionais que reviram Cuiabá, porque é uma associação bem pequena e recente. No meio do meu tratamento percebi que a vida da gente funciona como uma engrenagem. Eu te ajudo, você não vai me ajudar de volta, mas você vai ajudar outra pessoa”.
Pensando em fazer girar a engrenagem da solidariedade, além das doações para a AAPOC, Gabi também pretende ajudar outras instituições que encontrar pelo caminho quando Vida já estiver na estrada. A venda dos produtos "De Carona com a Vida" foi a forma que a fotógrafa encontrou de conseguir custear parte dos gastos.
“Eu poderia pegar toda a minha história, colocar no meu bolso e vida que segue. Entendi que meu propósito com a minha vida, com Deus, com Ganesha, com esse ser superior que não importa o nome, aliei meu sonho de criança com meu propósito de vida que é ajudar as pessoas, ainda que seja de forma pequena”.
Tumor era “do tamanho de uma azeitona”
Gabi descobriu o nódulo em um dos seios por acaso enquanto se espreguiçava no quintal de casa, no ano passado. Ela lembra que sentiu uma fisgada e, quando colocou a mão em cima do seio, sentiu um nódulo do tamanho “de uma azeitona”. Como tinha acabado de colocar silicone, a fotógrafa chegou a pensar que a prótese tinha explodido.
“Nunca passou pela minha cabeça que seria um câncer. O primeiro mastologista falou que não era nada, que era um cisto de água e eu não precisava me preocupar. Ele queria fazer uma punção dentro do consultório, mas eu comecei a chorar. Eu sentia o nódulo do tamanho de uma azeitona, mas ele era menor que isso”.
A fotógrafa diz se sentir sortuda por ter descoberto o tumor “na hora certa”. Mais tarde ela descobriu que havia 85% de chance do câncer se tornar uma metástase. O tratamento oncológico acabou em fevereiro deste ano, apesar de sentir que recebeu vida de volta, Gabi afirma que não se sente como antes do diagnóstico.
“Eu tive um noivo há muitos anos que faleceu de câncer, então naquele primeiro instante obviamente ele veio na minha cabeça. Esses nove meses, considero que foi uma gestação mesmo, porque eu renasci. Foi literalmente: ‘toma, Gabi, sua vida de volta’. Só que nossa vida nunca mais é a mesma”.
Durante o tratamento, a fotógrafa não deixou de trabalhar. Ela conta que aprendeu a entender os sinais do corpo durante as sessões de quimioterapia. Houveram dias de muito mal estar, mas Gabi lembra que, depois do resguardo necessário, conseguia sempre se reerguer. Foi assim que passou pela quimioterapia e radioterapia.
“A quimioterapia acabava comigo e eu fazia uma por semana, foram 15 sessões de quimioterapia e 19 de radioterapia. Comecei a pensar: E se eu morrer, o que eu deixei para as pessoas? Eu fui atrás do meu sonho? Tive esse estalo de comprar um carro, colocar minhas coisas dentro e viajar quando o tratamento terminasse”.
Por enquanto Vida é um micro-ônibus
Estacionada em uma oficina de Cuiabá onde passa pelos reparos de uma parte considerada como “o coração”, Vida ainda é apenas um micro-ônibus, explica Gabi. A fotógrafa pretende começar a transformação do veículo em um motorhome de maneira totalmente artesanal e aceitando ajuda de quem se colocar disponível.
“A ideia era trazer para cá e eu poder construir de forma artesanal. Não tenho condições financeiras para fazer isso em uma empresa de motorhome. vou construir com minhas próprias mãos e as pessoas podem me ajudar como elas quiserem. Ganhei duas placas solares recentemente, por exemplo”.
Micro-ônibus ainda vai passar por reformas para ser transformado em motorhome. (Foto: Arquivo pessoal)
Para Gabi, os nove meses de tratamento oncológico lhe tornaram uma mulher corajosa e decidida a realizar o sonho de uma vida inteira que havia sido engolido pela rotina.
“O câncer me deu coragem, porque esse desejo era uma coisa que estava em meu coração há muito tempo. Me separei em 2020 e vendi meu carro para comprar uma van. Meu pai disse que a gente estava no meio de uma pandemia e que não daria certo. Pensei melhor e guardei a grana. Agora surgiu essa oportunidade e eu estou encarando loucamente isso”.
Ela ressalta que ainda não pode afirmar que está curada, já que precisa fazer acompanhamento durante cinco anos por conta do risco de recidiva. No entanto, Gabi colhe alguns dos frutos do sonho que começou a plantar. O maior deles, de acordo com ela, foi ter feito a primeira doação para AAPOC.
“Vou falar algo bem sério, que já falei para todo mundo: Se eu morrer hoje, e nem estou falando de câncer, morro feliz, porque já iniciei esse sonho, já comecei a ajudar as pessoas. Fiz a primeira doação para AAPOC no mês passado. Isso já me deu uma alegria”.
Sobre os reparos necessários para conseguir transformar um micro-ônibus de mais de duas décadas em casa, Gabi responde prontamente que não tem pressa. Sem medo de expor sua história com o câncer de mama, a fotógrafa espera ajudar outras mulheres e homens, que também podem ser diagnosticados com a doença, pelas estradas que passar.
“Se demorar seis meses ou um ano, é o tempo da vida. Vou entender isso, porque uma das lições que o câncer me trouxe é que as coisas não acontecem do jeito que queremos, elas acontecem como tem que acontecer e são como elas são. Cabe a nós aceitar. E esse processo de entender é muito difícil, porque muitas vezes a gente quer diferente. Lá na frente a gente entende o porquê de tudo”.