As letras garrafais em vermelho e sombreadas escrevem o nome da Mercearia Paraíso na fachada do estabelecimento que existe há mais de 50 anos em uma das esquinas do bairro Jardim Cuiabá, em Cuiabá. Rodeada por casas de famílias tradicionais, que chegaram na região há décadas e costumavam comprar no sistema de caderneta, o local resiste na simplicidade.
Leia também
Cuiabano cria baguncinha gigante em com mais de 2kg e prêmio de R$ 100 para quem comer sozinho
A Mercearia Paraíso começou com o sergipano João Antônio de Oliveira, que faleceu há quase 15 anos, quando tinha 86. Pai de nove filhos, sendo seis homens e três mulheres, João Antônio primeiro abriu uma pequena garaparia em um dos cômodos da casa da família, onde hoje funciona o mercadinho que é administrado por um dos descendentes, Gilberto Antônio de Oliveira, de 72.
É Gilberto que resgata a história do pai nas próprias lembranças e que a mantém viva desde que decidiu continuar sustentando a família com as vendas da Mercearia Paraíso. Ele conta que, apesar do local ter começado com a venda do caldo extraído da cana-de-açúcar, não demorou para que os poucos vizinhos do bairro fossem em busca de secos e molhados.
“Quando meu pai começou a trabalhar melhor e a gente começou a crescer, arrumar serviço melhor, ele construiu aqui, coisinha bem simples, começou com uma ‘garapariazinha’. O pessoal começou a pedir: tem massa de tomate? ‘A vizinharada’ era pouquinha, mas tinha. Meu pai pensou: bom, se estão querendo massa de tomate, eu vou comprar para vender. Foi colocando mais coisas”.
O comerciante brinca que, quando a família “assustou” o negócio expandiu e duas outras mercearias nasceram no mesmo bairro. “Tinha uma aqui, outra ali em cima, assim foi indo, foi nossa vida”. O espaço teve poucas mudanças visuais e estruturais, fato comprovado por uma balança antiga de pratos que fica exposta no local.
Balança antiga que foi do pai de Gilberto permanece na Mercearia Paraíso. (Foto: Bruna Barbosa/Olhar Direto)
O aparelho era do pai de Gilberto e se tornou uma relíquia capaz de transportar para uma época em que os clientes ainda compravam itens fracionados, como a manteiga, que era vendida por pedaços.
“Tem muita gente que ainda mora aqui do nosso tempo, vendia por caderneta, vendia de litro, de latinha, vendia manteiga no papelzinho. Naquele tempo era tudo fracionado, não tinha esse negócio de falar que só vendia de dúzia, até hoje se você quiser um ovo, eu vendo”.
Gilberto acorda cedo todos os dias para trabalhar na Mercearia Paraíso, mas confessa que já sente o peso dos 72 anos que o fazem ficar cansado com mais facilidade. Por isso, o trabalho no caixa é alternado entre os quatro filhos.
“Está meio perto [de parar] por causa da idade, fico aqui todo dia, de manhã cedinho já tá aberto, vendo pão. A ideia é deixar para os meus filhos, mas eles também já estão cansados, porque aqui, se um levantar dessa cadeira, outro tem que sentar nela”.
Mudanças no entorno da Mercearia Paraíso
A família de Gilberto se mudou para o bairro, que parecia um “grande cerradão”, como lembra o comerciante, em 1963, logo quando chegaram em Cuiabá. Diferente da Mercearia Paraíso, o entorno tem mudado constantemente com a chegada de grandes empreendimentos e tudo acontece diante dos olhos do idoso.
Gilberto conta que, onde hoje é o Córrego 8 de Abril, a poucos metros da Mercearia Paraíso, existia uma linha imaginária que separava classe alta e baixa.
“Aqui eram dois bairros, a firma que era dona daqui dessa região chamava Jardim Cuiabá, ficou bairro Jardim Cuiabá, era 1 e 2. Essa parte que estou é a 1, a parte dos ricos, onde tem o hospital, é a 2. Aquela parte não foi dada”.
“Sempre existiu essa separação entre ricos e pobres, aqui sempre foi habitado pela classe média mais baixa. Para lá, o dono do loteamento vendeu só para gente de classe mais alta, fizeram casarões, que é o que ainda tem para lá, era desse jeito”, continua.
Merceria Paraíso continua sendo o sustento da família de Gilberto, que mora no mesmo local há décadas. (Foto: Bruna Barbosa/Olhar Direto)
No caso do comerciante, os pais não tinham dinheiro de sobra. O pai de Gilberto chegou a ir em busca de grandes pedras de diamante em um garimpo em Paranatinga, mas não teve sorte e conseguiu apenas o suficiente para o sustento da família. “Não teve sorte no garimpo, só ‘fazia’ para comer, coisa pequena, de pouco valor”.
Como era carpinteiro, decidiu mudar com a esposa e os filhos para a capital de Mato Grosso que, àquela altura, já dava indícios de crescimento. Quando chegaram em Cuiabá, logo se mudaram para o terreno em que atualmente funciona a Mercearia Paraíso.
Gilberto que já estava acostumado a trabalhar, mesmo com pouca idade, começou a engraxar sapatos para ajudar no orçamento. A casa da família foi construída aos poucos e, na primeira versão, foi feita de adobe e tinha três peças.
“Meu pai comprou e, depois foi ver, era um picareta que estava falando que era dele. Tivemos sorte que ganhamos com a escritura e tudo na mão. Na época, para ele foi muito dinheiro. Aqui era um terreno só, nós construímos, fizemos três pecinhas de adobe. Quando o governador passou o documento para nós, teve que desmanchar, porque deu certo na rua, nossa casa ficou no meio da rua”.
Com a regularização do local, eles foram obrigados a destruir o imóvel feito de adobe e construíram uma casa de forma convencional. Para Gilberto, a separação entre as regiões com maior e menor poder aquisitivo continua existindo, mas ele não se incomoda com a chegada dos prédios.
“A cidade melhorou muito, cresceu muito, aqui era um cerradão, um matão. A gente fica alegre por ver que as coisas estão crescendo para todo lado, pode ver que o que tem por aqui é prédio grande, cada ‘velona’ alta. A gente se considera pobre, não tem como fechar e ir passear, o lema é trabalhar, sem dó e sem piedade”.
O comerciante sorri ao contar que o nome da mercearia foi escolhido por acharem que seria um jeito bonito de chamar o estabelecimento, mas não esconde que o pequeno negócio significou uma espécie de paraíso para o legado do sergipano que trouxe a família para Cuiabá.
“Se tem um trem que eu gosto, é disso daqui. Não lembro um sonho assim de cabeça, mas enquanto tiver força e saúde, vou levando. Aqui abro de domingo a domingo. Não tenho uma vida de rico, não posso passear, mas a gente fica feliz porque estamos salvando o dinheiro do dia aqui”.