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Quinta-feira, 02 de maio de 2024

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teatro na veia

A arte de invadir a dimensão do medo (e como abraçar os deuses da escuridão)

Conversar com Marcelo é ter a sensação da freada antes da batida. O arrependimento antes mesmo de terminar de falar o que coração pensava e o cérebro não conseguiu censurar a tempo. A força para dizer a vovó que você quebrou sua louça de cristal. Dar um plié com a frigideira em mãos em frente ao mumificado pai mortificado, sem lançar dúvidas sobre o que a dança pode causar naqueles que temem o ofício dos que nascem com pés baryshnikovianos.

Foto: Reprodução

Marcelo Lapuente, ator e comedor de cometas.

Marcelo Lapuente, ator e comedor de cometas.

Artistas devem encantar. Ser únicos, irreversíveis, gênesis de seus próprios caminhos, artimanhosos, mimados, febris, coléricos, célebres, preferencialmente flertar com o infinito, nemesistas que são. Caso contrário, seriam apenas humanos. Artistas devem se dar o direito da titularidade de semi-deuses. Obrigatoriamente, devem ser exclusivos. Outra maneira tornar-se-iam medíocres, risíveis. Ao subir num palco, empunhar um microfone, segurar um pincel, namorar as normas da loucura; devem ter em mente que se transformam em moiras assim que deixam cair a máscara da realidade, eles de lá, do outro lado do cosmo, com suas nefastas mortalhas guiando em direção à luz todo o resto decrépito de humanidade que neles enxerga graça. Devem ser o universo sem desculpas. Devem doer no rastro alheio, matar de saudade aqueles que se atrevem a deles se aproximar e morrer junto. Devem doer a dor lancinante de todas as estrelas mortas. Artistas devem ser sinônimos de ego. E carregar em si o signo da tendência suicida, autodestrutivos.

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Eu conheço um destes. Um ariano que tudo sabe. Dono de si e do mundo que toca. Um ariano que se transforma, dia após dia, num ser de Aquário. Um ariano valente. Um aquariano que recua ante o perigo, mas que sabe, ou que ao menos parece estar ciente de que para se ganhar o mundo deve se carregar no bolso uma boa quantia de humildade.

Se peixe fosse, seria um destes em extinção. Raro como um Isogomphodon oxyrhynchus,o ator de teatro Marcelo Valente vem de uma linhagem de interpretes que começou nele e acaba em si, que conseguem somatizar todo o filtro de sentimentos em cada gestual promulgado em palco. Explodir peitos em lágrimas e verte-las da alma sensível daqueles que adotam no ofício de Molière a maneira mais legítima de entrar em contato com a verdade também lhe parece fácil, digo eu que já o vi em cena.
 
Valente, hoje quente, frio, pobre e rico como um estado espanhol se transformou aos poucos em Marcelo Lapuente. O sobrenome é herança da mãe, Carmen. A quem credita sua beleza. Que lhe cai do rosto como água de cachoeira e lhe sobe os 1,84 metros de átomos enfurecidos que compõe teu perfilado corpo.

Este rapaz de poucos anos de vida e de uma vivência absurda me confidenciou segredos, destes que soltamos aos poucos, a cada gole de álcool. Me contou, em partes de teledramartugia notívaga, quase tudo que vivenciou. Dentro de um carro sujo e emprestado, pensei em entrevista-lo. Não consegui. Ele dominou o ar que nos respirava e pos-se a detalhar um carinho pela vida com olhos de criança. Disse, em um dado momento, que muito jovem saiu do Rio Grande do Sul e se instalou com família e pés de valsa em Alta Floresta. Lá, no meio do Inferno Verde. Em um lugar onde a commoditie mais desejada pelas crianças era um raro picolé Kibon. Marcelo cresceu assistindo e ouvindo uma matrona gorda/obesa/enorme/peituda, fugida de um filme do Fellini, matando porcos e galinhas. Havia sangue. E gritos. Uma cerca os separava. Centímetro lhe era acrescidos pelo tempo enquanto admirava sua mãe dançar o amor pela família. “Estou bonita?”, lhe perguntava sua ascendente. Marcelo dizia que sim, disse ele a mim, com a admiração escorrendo pelos cantos da boca. Marcelo ama a família. E ama a rua. O espírito da rua. Que o colocou em direção a São Paulo assim que saíram de Alta Floresta para vir morar em Cuiabá.

Na cidade que chora garoa, Lapuente vivenciou um tanto de enfermidades juvenis e deixou que sua beleza física o levasse a flertar com o charme do mundo. Aquele que só pode ser comprado com dinheiro. Quando se pos sozinho na terceira maior cidade do mundo, era ainda criança. Entendeu que poderia ver pela fenda do mundo cada céu que parte. Lembrou-se que ressentia-se com a cidade Alta Floresta pela falta de um teatro. Seus olhos de Lucrécio a espera de tradução. Marcelo é um Galactus. Come cometas no café da manhã e se deixa ser atropelado por teu ego com a constância de quem os olhos pisca.
 
Vive em um mundo suspenso e flutuante, desafiando leis com flores em riste. Certa vez foi preso por isso. E virou herói musicado  na canção Cafuá por uma das bandas de heavy metal mais celebradas de Cuiabá: o Zagaia, idealizada e capitaneada pelo Pãn satânico-demoníaco do metal mato-grossense, Drailler Souza. Fã de Pearl Jam e devoto de Led Zepellin, Marcelo não vê na quarta arte uma prática autoral, confidenciou-me.

Ao teatro tinha dado sua alma. Comentou lá pelas tantas, dentro daquele veículo imundo que se tornou meu escritório, podre de nicotina e odores humanos, que nunca tinha entrado em um, nem visto, quando infante. Mas que sabia, do fundo de sua perturbada e enriquecida alma, que ator seria. Em Cuiabá, experimentou o palco pela primeira vez. Como primeiro diretor, teve na figura de um padre sadomasoquista, que mandou-lhe se envergonhar e bater com um martelo na cruz de um Cristo vivo, seu tutor.

Conversar com Marcelo é ter a sensação da freada antes da batida. O arrependimento antes mesmo de terminar de falar o que coração pensava e o cérebro não conseguiu censurar a tempo. A força para dizer a vovó que você quebrou sua louça de cristal. Dar um plié com a frigideira em mãos em frente ao mumificado pai mortificado, sem lançar dúvidas sobre o que a dança pode causar naqueles que temem o ofício dos que nascem com pés baryshnikovianos.

Marcelo desgasta, intenso que é. Foi a São Paulo, voltou. Montou uma das companhias de teatro mais respeitadas pelo métier artístico mato-grossense, o Fúria. Cansado da cidade pouca, voltou a São Paulo. Durante seis anos integrou uma das mais conceituadas companhias paulistas. Com ela, viajou a Europa. Cresceu. De dentro para fora e de fora pra dentro.

Eu que não o via há 10 anos, me encantei pelo caminho que este aquariano que deixa, aos poucos, suas atitudes arianas no passado, trilha sobre os grãos que formam a Terra. Quem sabe, se nos encontrarmos daqui a dez anos, poderei escrever sobre ele um livro.
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