Quando se lembra do sentimento de ter experimentado as primeiras provas do vinho produzido na própria vinícola, Rachel Guimarães Molina, de 48 anos, não consegue evitar as lágrimas que fluem dos olhos. A Locanda do Vale, em Chapada dos Guimarães, começou como um sonho dela e do marido, Luiz Oliveira, de 62. O casal trabalha com consultoria ambiental em Cuiabá, mas a ideia de terem a própria vinícola surgiu quando começaram a pensar em formas de programar a aposentadoria e a vislumbrar um futuro com mais contato com a natureza.
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Locanda é uma palavra em italiano que, traduzida para o português, significa “local que se produz comida e bebida”. Rachel brinca ao fazer uma comparação aos bulixos que foram tão tradicionais em Mato Grosso. Assim como eles, que eram tradição por vender “secos e molhados”, além de centenas de outros produtos, a história da vinícola também vai se misturando com a de Chapada dos Guimarães.
“Do Vale é porque estamos no Vale da Benção, que é um cinturão de hortaliças. Temos aqui um grande produtor de chuchu, tem também produção de abobrinha, ervas, berinjela, açúcar mascavo e rapadura. Aqui também já foi uma linha de tropeiros, na época dos bandeirantes, eles subiam nessa linha em direção a Chapada dos Guimarães. Dizem que também já teve um engenho aqui. Foi ficando um monte de histórias no meio do caminho, inclusive a nossa”.
Juntos há mais de duas décadas, o casal sempre foi apaixonado por bebidas e comidas de maneira geral, mas os vinhos sempre ocuparam um lugar especial no coração deles. Durante as conversas sobre a aposentadoria e o futuro que planejam viver juntos, Rachel lembra que foi provocada por Luiz.
“Ele brincou: ‘vamos fazer nosso vinho agora?’. Eu topei. Foi quando começamos a procurar lugares possíveis. Nossa ideia inicial era até fazer fora do Brasil, mas fizemos um projeto piloto e retornamos com ele para Cuiabá com a certeza de que faríamos aqui no entorno. Começamos a procurar uma área que entrasse nos requisitos necessários para fazer a implantação do vinhedo”.
Vinícola ainda está em fase de construção, mas casal já conseguiu transformas uvas produzidas no local em vinho. (Foto: Arquivo pessoal)
Rachel é engenheira civil e o marido é formado em agronomia. Pela experiência dos anos com o trabalho na área ambiental, eles começaram a pensar em questões mais técnicas, como o tipo de solo, altitude e amplitude térmica. Por já terem visitado algumas vinícolas, o casal já tinha algumas pequenas noções do que precisava ser prioridade.
“Brincamos que fizemos um gabarito dos locais possíveis em torno de Cuiabá onde havia probabilidade do projeto dar certo. Adquirimos a área e compramos um dia com um consultor, que é o representante máximo, digamos assim, da dupla poda, ele que trouxe para o Brasil, que é o Murilo Regina. Passamos um dia com ele em Minas Gerais e levamos tudo que tínhamos, amostras de solo, estudo de amplitude térmica… E o sonho, né?”.
O parecer do consultor foi positivo e confirmou ao casal que seria possível produzir uva no terreno escolhido em Chapada dos Guimarães. A próxima etapa foi a definição sobre quais variedades da fruta seriam plantadas, já que a dupla poda possui alguns protocolos estabelecidos para algumas espécies e outras não.
A dupla poda consiste na inversão do ciclo da videira por meio da realização de duas podas por ano. Elas fazem com que a maturação e a colheita, que no Brasil ocorre no verão (mais tardar no início do outono), aconteça no inverno.
Pandemia no caminho do sonho
Quando já estavam com o terreno comprado e começando a implantação do projeto, a pandemia da covid-19 pegou Rachel, Luiz e milhões de brasileiros de surpresa. Ela lembra que eles compraram a área em junho de 2019 e, no mês seguinte, viram tudo fechar por conta do vírus mortal.
“Ficamos naquela incerteza de fazer ou não. Decidimos seguir, mudamos para lá durante a pandemia e começamos a implantar o primeiro vinhedo em 2020. Pela própria pandemia acabou que o fornecedor não passou algumas mudas, então ficaram algumas coisas meio pendentes, além de ter sido um ano de muitas queimadas em Mato Grosso”.
A receita parecia desastrosa e Rachel não sabe dizer com exatidão o que aconteceu, mas a terra do vinhedo em Chapada dos Guimarães respondeu bem mesmo com todas as intempéries. As primeiras uvas foram plantadas em agosto de 2020 e, no mesmo mês do ano seguinte, o casal colheu a primeira safra de syrah.
“Lembro que nós levamos para São Paulo para vinificar e as pessoas não acreditavam que tínhamos conseguido fazer com que essa uva produzisse em curto espaço de tempo. Todo mundo que planta quer colher, mas a planta é muito jovem ainda e mesmo com tudo que foi feito, um pouco de amor, sorte, carinho e clima… Ela se manifestou”.
Para aprender sobre as especificidades da produção, Rachel precisou colocar as mãos na terra. (Foto: Arquivo pessoal)
Como no primeiro ano de colheita eles ainda não tinham estrutura para vinificar (transformar em vinho) as uvas, elas foram levadas para São Paulo. Foi assim que Rachel experimentou o vinho sonhado por ela e pelo marido. A emoção transborda até hoje.
“É bom, né? É materializar um sonho. Foi uma emoção muito forte. O projeto é pequeno, mas muito arrojado e empreendedor”, conta com a voz embargada.
Ela explica que o processo de se fazer um vinho é lento e tem muitas etapas. As primeiras uvas colhidas foram levadas para vinificação em agosto de 2021. Em seguida, o vinho ficou em tanque de inox até novembro do mesmo ano. Depois, ainda foi preciso mais um ano nas barricas até ser engarrafado.
“Ficou até maio deste ano, quando liberamos o primeiro lote para venda. É um processo longo. Quando o vinho está na barrica ele tem as trocas, vai oxigenando cada vez que faz as conferências mensais. O vinho tem uma evolução durante cada processo. Como o vinho era muito jovem, tentamos fazer com que ele começasse a exprimir o terroir de Chapada dos Guimarães, então não é algo assim imediato, é um vinho mais de guarda”.
Quando fala em terroir, Rachel se refere às localidades específicas que produzem vinhos únicos, como no caso da Locanda do Vale. O resultado é exclusivo de cada região por conta de fatores geográficos, climáticos, históricos e culturais.
“O enólogo disse que temos um potencial de guarda de cinco anos e ainda posso guardar para consumo durante 10 anos. Então, tem toda uma evolução na garrafa, embora seja menor. Assim foi feito nosso primeiro sirrah, o primeiro mato-grossense, porque somos a primeira vinícola de vinhos finos de Mato Grosso”.
Atualmente, a Locanda do Vale tem quatro variedades de uvas tintas e três brancas, sendo que todas são vitiviníferas. Além de vinho, o casal também produz suco e espumante com os frutos produzidos na vinícola.
“No plantio de 2021 fizemos novas apostas, porque tem uva que já tem protocolo no processo da dupla poda, como a cabernet sauvignon. Goiás está plantando e está tendo resposta bem interessante, apostamos nela. Plantamos sauvignon blanc, chenin blanc, que tanto posso fazer um varietal quanto espumante”.
Mãos na terra
Quando fala sobre as especificidades de cada uva ou os protocolos que envolvem a criação de uma vinícola, Rachel transparece conhecimentos técnicos sobre cada etapa. Ela explica que o estudo é imprescindível, assim como o ato de colocar as mãos na terra.
“Nesses dois anos fui para Espírito Santo do Pinhal para trabalhar como mão de obra braçal na vinícola do nosso consultor, para aprendizado mesmo. Agora nesse processo final fizemos muitas análises para definir o ponto de maturação da uva para colheita. É uma uva muito madura e saborosa, sem muita interferência”.
Quando começaram a compartilhar sobre o sonho de implantarem a própria vinícola em Chapada dos Guimarães, Rachel e Luiz foram taxados de “loucos”. No entanto, a experiência que já tinham, mostrava que era possível plantar uva na região.
Cobrança dos amigos para conhecer o vinhedo e curiosidade da população fez com que o casal abrisse para visitas com direito a piquenique. (Foto: Arquivo pessoal)
“Em 2011 um enólogo de uma grande empresa, que tinha um projeto bem similar ao nosso, usou o termo viticultura tropical, foi a primeira vez que escutamos o termo. Mas as pessoas não acreditavam, só nós tínhamos certeza. A gente sempre teve certeza de que iria produzir uma boa uva e faríamos o vinho, mas não sabíamos o que a natureza iria demonstrar no terroir”.
Para o projeto, eles contaram com o trabalho de uma arquiteta especializada em vinícolas, Vanja Hertcert. Rachel explica que eles não podiam se inspirar nas vinícolas europeias ou da região Sul, por exemplo, já que a construção seria destoante ao território mato-grossense.
A principal preocupação do casal era de que a primeira vinícola de Mato Grosso tivesse a própria identidade. Ela conta que o projeto de Vanja foi inspirado no formato de um pássaro e, quando finalizado, será possível “vê-lo voando” de alguns ângulos.
“Temos um projeto arquitetônico bem bonito que vai ter a indústria embaixo e a parte do receptivo em cima. Precisávamos de um olhar muito forte para o lado da produção industrial e ao mesmo tempo captar o jeito de Mato Grosso. Tenho que fazer uma vinícola alegre e mais leve para o nosso clima, não posso fazer um castelo medieval ali”.
Atualmente, a vinícola está aberta ao público com passeios guiados e experiências como piqueniques. Rachel conta que a ideia surgiu através da cobrança de amigos e da própria população, que costumava passar pelo local.
“Teve dias que do nada recebíamos 30 pessoas passando, pedindo por suco de uva ou caixinhas de uva. Decidimos profissionalizar isso. E começamos a ter um pouco do nosso vinho para servir, porque preciso criar essa expectativa na população sobre o vinho daqui, um vinho mato-grossense gera muita curiosidade”.