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Domingo, 28 de abril de 2024

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roteiros em comunidades

Antropóloga abre primeira agência de afroturismo de MT: 'onde estão os negros na história mato-grossense?'

Foto: Reprodução

Cururu é apresentado como dança ancestral negra no roteiro criado por antropóloga

Cururu é apresentado como dança ancestral negra no roteiro criado por antropóloga

Quando criou a “Afroutours”, primeira empresa de afroturismo de Mato Grosso, a antropóloga Poliana Jaqueline Oliveira Queiroz, de 36 anos, decidiu devolver o protagonismo da história negra mato-grossense com roteiros focados na experiência de interação real com os espaços visitados. O primeiro vai acontecer no sábado (15), nos quintais de Vovó Apolônia e Vovó Leila, benzedeiras tradicionais de Poconé (104 km de Cuiabá). 

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"O foco é turismo de experiência, não é turismo de contemplação. No afroturismo tem um perfil que queremos atender. Claro que dentro dele refinamos: quem gosta mais de trabalho manual, de ouvir história, caminhar ou botar a mão na terra. É uma experiência imersiva em uma comunidade quilombola”.

Atualmente, a Afroutour tem cinco roteiros em Poconé, sendo dois na cidade e o restante nas comunidades quilombolas, uma delas com mais de 300 anos de existência. No entanto, a antropóloga pretende expandir os passeios. Em Cuiabá, por exemplo, uma caminhada ao bairro Pedra 90, em 13 de maio, vai contar a história de Ana Martinha, que morreu aos 127 anos e foi a mulher mais velha do Brasil. 

Ana Martinha era negra e descendente de escravos. Sua história ficou no imaginário dos moradores do bairro periférico de Cuiabá, fazendo com que a idosa ganhasse uma estátua e virasse nome de praça. 

“Lá tem uma estátua dela, então tem toda uma história que não é contada. Poucas pessoas sabem que ela é uma mulher negra. A ideia da agência é essa também, porque também há uma história negra urbana”.  

Poliana explica que Vovó Apolônia, que era uma mulher negra, tinha conexão com outra mulher que fez história no Brasil: Laurinda Cintra Lacerda, a Doninha do Caetê. Afeita às práticas de cuidado, como banho de ervas, Doninha do Caetê foi presa política na Era Vargas. Apesar de não ser uma mulher negra, sua história se cruza com a de Vovô Apolônia, que já faleceu, mas segue “viva” na casa onde morava. 

"Tem muitos benzedeiros em Poconé, são pelo menos 200. Vamos contar um pouco dessas histórias das práticas de cuidado. A Vovó Apolônia cuidou de um monte de gente. Ela não é mais viva, mas tem o quintal dela, o quarto dela, o espaço sagrado dela… Ela está lá. Vamos ouvir as filhas e netos falando sobre ela. Teremos um momento espiritual mesmo, de ficar ali, respirar e parar um pouco. Depois teremos a experiência de fazer nosso próprio banho, porque ela era referência nisso”. 

Rota de Cuidados de Cura apresenta os quintais de duas benzedeiras de Poconé, Vovó Apolônia e Vovó Leila. (Foto: Reprodução)

Chamado “Rota de Cuidados de Cura”, o primeiro roteiro, que tem limite máximo de 12 pessoas e está sendo vendido por R$ 350 (com transporte, alimentação e seguro viagem incluso), terá oficinas de preparação de banho de proteção e de descarrego, além de confecção de amuleto e momento de conexão com o sagrado. 

Além de chá com bolo tradicional, os participantes também vão poder degustar o almoço com pratos típicos de Poconé. Poliana conta que os espaços são conhecidos pela fartura das festas de santos negros. Em uma das vezes que foi ao quintal de Vovó Apolônia, a antropóloga viu as mulheres da comunidade alimentarem, de graça, mais de 2 mil pessoas. 

“Eu estava lá e vi. É uma logística que nenhuma produção cultural de grandes eventos sabem fazer. No início oferecem café da manhã, alimentam 500 pessoas, se tiver 2 mil, alimentam todas. É uma logística… Não falta comida, não falta cerveja, não falta nada. Não é só uma visão apaixonada da minha parte, mas acho que essas dinâmicas têm muito a nos ensinar. É tudo de graça, só vendem cerveja. ”. 

Poliana explica que os dois quintais são espaços das festas tradicionais há mais de 200 anos. No quintal da Vovó Leila, que ainda vai receber os participantes do roteiro, ela vai falar sobre as religiões de matriz africana e explicar a importância do ritual que envolve o banho de proteção. 

“É sobre pensar no Mato Grosso negro, não se fala nisso. Apesar de existirem vários coletivos, como o Instituto de Mulheres Negras, que tem 20 anos.. Não se fala, é nichado. Pensar o Pantanal negro também, Poconé é Pantanal. O que vemos é o do dono da fazenda, não fala da pessoa que cuida do gado e entende da terra, que é negra. Ok, temos o agro, não podemos negar, não é sobre isso, mas podemos ter outras coisas também e caminhar junto”. 

Economia criativa para gerar renda nas comunidades

Para conseguir tirar o projeto de criar a primeira empresa de agroturismo do plano dos sonhos, Poliana se inscreveu no MT Criativo e foi aprovada em segundo lugar. Foi dessa forma que ela conseguiu o recurso financeiro necessário para estruturar a Afroutour. 

“Fiz meu mestrado em antropologia em Poconé, há uns oito anos. Tenho uma relação com Poconé, porque estudei lá, fiz meu mestrado sobre patrimônio da cidade, depois fui trabalhar em uma instituição privada lá, morei por cinco anos. Nesse processo descobri que havia uma ausência de discussão da identidade negra no território, apesar de 90% da população ser negra. Via tantas pessoas tão fragilizadas e a cidade tão potente. Decidi que precisava fazer alguma coisa”. 

Ela explica que as comunidades quilombolas começaram a se formar em Poconé por conta de características geográficas como a cheia pantaneira, que permitia que os negros e negras fugitivos da escravidão pudessem se esconder. 

“São comunidades quilombolas que têm as suas características do Pantanal, não são como as da Bahia, por exemplo, que as pessoas que iam se esconder em ambientes mais altos. Em Poconé não, as pessoas se escondiam porque enche de água e não teria como pegar esses fugitivos, digamos assim. Fui me conectando e foi um processo que foi reforçando minha identidade negra. Via tantas pessoas tão fragilizadas e a cidade tão potente. Decidi que precisava fazer alguma coisa”. 

Igreja de São Benedito na comunidade quilombola Morrinhos, que tem mais de 300 anos. (Foto: Reprodução)

Quando trabalhava no Sesc Pantanal, onde trabalhou por cinco anos, Poliana desenvolveu 17 projetos, sendo um deles o Núcleo de Pesquisa sobre Patrimônio Imaterial, onde conseguiu registrar as práticas que envolvem os saberes negros. 

“Saí do Sesc Pantanal e voltei para Cuiabá. Foi quando abriu o edital do MT Criativo, em 2021. Convidei uma pessoa que já trabalhava comigo, que tem 19 anos, que é a Bianca, está estudando Turismo e sabe tudo de Poconé. Ela ama a cidade e não quer sair de lá. Decidimos tentar escrever. Quis fazer algo colaborativo, mesmo ela sendo muito jovem, porque queria que ela realmente escrevesse, para aprender mesmo”. 

A primeira fase do projeto foi a formação de jovens em quatro comunidades quilombolas de Poconé, já que o recurso não daria para atender todas. Poliana e Bianca também ouviram dos jovens sobre as potencialidades das comunidades poconeanas. A antropóloga ressalta que eles enxergam muita potência. 

“Destinamos uma parte da verba para a associação, porque a grande maioria delas são regularizadas, possuem CNPJ e sua liderança. As quatro escolhidas têm. Destinamos como incentivo para eles também, para que eles pudessem, enquanto mais velhos, incentivar e estar perto dos jovens. Além do valor destinado para os jovens. Desenhamos o roteiro com os jovens, isso online. Depois fomos in loco, pisar no chão mesmo com eles para entender qual a logística”. 

Ainda durante o processo de estruturação da empresa, Poliana contou com a parceria realizada entre a Afroutour e o marketplace internacional Diáspora Black, precursor de afroturismo no Brasil, que possui roteiros no mundo todo. O CEO do Diáspora Black esteve em Poconé e em Cuiabá. 

Com isso, a agência de afroturismo mato-grossense finalizou os quatro roteiros iniciais, em Poconé, mas a ideia é estender os passeios para outras comunidades de Mato Grosso. Poliana ressalta que um dos objetivos é fortalecer a economia da cidade. 

“Fazer com que as pessoas permaneçam na cidade, deixem o dinheiro delas lá e movimentem a economia, porque parte do dinheiro do pacote volta para a comunidade. Os visitantes também podem consumir da economia local. À medida que o dinheiro for entrando, porque agora somos uma empresa, vamos estruturar a comunidade. Porque sim, existem fragilidades, não podemos romantizar, as pessoas não têm água para beber”. 

Roteiros por Poconé 

Os participantes dos roteiros terão a oportunidade de aprender, por exemplo, que o Siriri e o Cururu são danças ancestrais negras, assim como a técnica de agroecologia, que é praticada nas comunidades quilombolas. 

“É uma técnica ancestral negra. No roteiro as pessoas vão conhecer, colocar a mão na terra e plantar. Se quiserem comprar as verduras poderão também. Eles vendem entre eles, não fazem produção em larga escala para vender no mercado, por exemplo, porque não tem logística. 

Na “Rota das Águas” os turistas serão recebidos pela comunidade Jejum, que fica a 30 km de Poconé. Apesar de se chamar Rota das Águas, o roteiro explica a razão de não haver mais água na região. O desaparecimento dos rios culminou na extinção do peixe Jejum, que dá nome a comunidade, explica Poliana. 

“Não tem mais peixe lá porque não tem mais água. Chama Rota das Águas, mas não tem água. Quem conhecer vai entender porque não tem mais água. O roteiro começa com um pote de argila que foi a mãe ancestral da líder que mora lá que construiu com barro que ela ia na beira do rio pegar. Vamos fazer todo esse trajeto”. 

O ponto de partida dos passeios será na Casa das Pretas, que tem como presidente a professora Nieta Costa. A antropóloga conta que decidiu escolher o local por conta da liderança das comunidades ser feita por mulheres negras. 

No roteiro que passa pela comunidade Morrinhos, uma das mais antigas de Poconé, com 300 anos, os participantes vão ter acesso a uma vivência cultural no local. A comunidade cresceu no entorno de uma igreja de São Benedito, sendo assegurada por três irmãs através do tear, alimentação e, sobretudo, a fé no santo negro. 

 

“A igreja foi construída pelos moradores, é algo também que não falamos muito, a técnica do adobe é ancestral negra. As pessoas precisavam de um local para professar a fé e criaram esse lugar, depois foram se avizinhando para criar as comunidades. Se não for seu perfil caminhar, você pode ficar em uma roda de conversa com as mulheres fazendo tear ou fiar algodão a mão. Finalizamos na igreja com um canto sagrado, que é lindíssimo e um chá da tarde tradicional”. 

O terceiro roteiro em comunidade quilombola acontece na Chumbo e será composto por histórias assombradas que são contatadas pelos moradores. Na região, existe uma usina de álcool que foi embargada por trabalho análogo a escravião. 

“Essa usina trouxe várias pessoas do Nordeste para trabalhar, algumas não foram embora, seja porque não tiveram dinheiro para voltar e outras porque se relacionam com outras pessoas da própria comunidade. Tem um mausoléu, a usina está lá, os veículos caríssimos, está tudo lá. A comunidade ficou cercada de lendas de maus assombros”. 

Na Caminhada Poconé Negra, que também é uma das opções de roteiro de passeio oferecido pela agência, o objetivo é preservar a memória negra e entender o motivo dela passar pelo processo de apagamento, explica a antropóloga. 

“Por exemplo, o Museu da Vovó Bem, que é a casa de uma mulher colecionadora que gostava de juntar coisas e fez um museu. Ela mudou para um lugar, esse lugar tinha uma bacia usada para tomar banho, é uma pedra que foi entalhada por negros escravizados. As pessoas vão lá para conhecer enquanto exótico, só que a história que contaremos é onde estão as pessoas negras nesse roteiros”. 

Poliana conta que quando passou a questionar qual seria seu papel social enquanto mulher negra, decidiu que precisava desconstruir a cultura popular não racializada, que apaga a participação dos negros no Siriri e Cururu, por exemplo. 

“Quando é para falar de instrumento de trabalho, existe uma memória negra, mas quando é para falar de festividade, a parede inteira tem fotos de gente branca. E começamos assim: onde estão os negros na casa de Vovó Bem? No tour tradicional isso não é falado. Se você for pensar no grupo que faz mais sucesso hoje, o Flor Ribeirinha, em oposto a ele existe o Flor do Campo, que tem a mesma idade, só que não alcançou tanto sucesso assim. Por que? Porque é um grupo de negros retintos”.

Mais informações sobre datas e detalhes dos roteiros no site da Afroutours Agência
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