Olhar Conceito

Domingo, 28 de abril de 2024

Colunas

Divagações literárias sobre a solidão

Arquivo Pessoal

Havia dias em que tudo o que queria era estar em casa sozinho. Imaginava os pais fazendo uma longa viagem que durariam dias e ele poderia ficar sem restrições na casa vazia, longe de todos os temíveis olhos de uma sociedade reprovadora, e então aproveitaria e faria o que a imaginação lhe pudesse sugerir. Poderia sair correndo pela casa sem medo de que quebraria o lindo vaso de vidro bem trabalhado que sua mãe ganhara de presente dez anos atrás; poderia passar noites em claro jogando video-game sem ter hora para ir pra cama, sem ter uma voz que toda noite insistia em praticamente arrastá-lo, como se as palavras surgissem em sua frente como mãos invisíveis e começassem a desligar o aparelho e a empurrá-lo para o colchão; poderia dar festas gigantescas, divertir-se por intermináveis horas regadas a bebida e música alta, sem que lhe julgassem e recriminassem. Poderia fazer o que lhe fosse de maior agrado, o que a imaginação lhe permitisse, o que seu ímpeto lhe ordenasse.

Caminhando pela rua, perdido em pensamentos, ficava a observar as pedras soltas da calçada enquanto seus pés o levava para casa depois das aulas do colégio. Seria libertador ficar longe dos pais por um tempo. Considerou a possibilidade com discreto sorriso no canto da boca, vendo-se livre de regras que tanto lhe exigiam diariamente, e, animado, chutou uma das diminutas pedras que estavam ali, vendo-a cair longe das demais, no meio do asfalto. Estava sozinha, isolada, jogada contra a vontade em um mundo hostil em que logo passariam pneus e motores. Não teria a quem recorrer senão a si mesma – teria que aprender tudo o que não pôde antes, descobrir uma espécie de manual de sobrevivência para casos urgentes perdido em algum canto mal iluminado, em que todas as questões básicas sobre a vida estariam resumidas, a fim de que não sofresse tanto com a mudança imposta. Teria que aprender, sobretudo, a lidar com a vida sem companhia, sem família, sem amigos. Não teria a quem chorar quando as dificuldades fossem impossíveis, a quem reclamar quando as pressões lhe aumentassem, a quem recorrer quando o desespero batesse à porta. Estaria só, perdida em si mesma.

Inconscientemente parado, ficou o rapaz a olhar a pedra. O que era, então, o sentimento de estar sozinho? Ter a liberdade de fazer o que quiser, mas de não ter alguém para partilhar da vida? Poder ver-se livre de regras, mas não se frustrar com as desesperanças de quando somos chutados pelo destino?

Queridos pais, queridos amigos... Fiquem, entrem nesta minha casa que é o meu coração, irei servir um chá.

*Augusto Iglesias é estudante de Medicina e ora ou outra se atreve a escrever. No anseio de ambas as profissões, vai vivendo o dia a dia. Contato: augusto.iferreira@gmail.com

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