Da Redação - Bruna Barbosa
No ateliê da ceramista Nice Aretê, em uma das ruas de terra do bairro Jardim Ubirajara, em Cuiabá, o que prevalece é o silêncio. Enquanto ela fala sobre a paixão pela arte feita com barro, é possível ouvir apenas os pássaros cantando ao fundo. Nice afirma que precisa ser assim para que consiga “conversar” com a argila durante o processo de modelagem das máscaras e esculturas com temática indígena.
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Apesar de não ter descendência indígena, as figuras étnicas saem naturalmente quando Nice começa a modelar os blocos de argila. Ela diz que não entende muito bem o processo criativo e, pela falta de explicação, atribui significado espiritual para as obras de arte que faz manualmente.
“Não tenho descendência indígena, mas é uma algo que vem muito forte para mim. Me perguntava de onde vinham essas figuras. Um dia tive um sonho: eu estava chegando em uma aldeia e uma menina vinha me receber, mas ela me chamava de Aretê. Adotei esse nome por causa desse sonho”.
Nice, que é formada em Administração, decidiu aprender as técnicas de cerâmica com as ceramistas tradicionais da comunidade São Gonçalo Beira Rio, em Cuiabá. Ela define o primeiro contato com o barro como “avassalador”. Na época, ela trabalhava há anos na antiga Telemat e levava uma rotina estressante, que a fizeram deixar o emprego depois de 21 anos.
Depois do primeiro contato com a cerâmica, em 2013, Nice passou a produzir freneticamente. Ela conta que mesmo sem previsão para queimar as peças, sentia quase que uma necessidade de colocar as mãos no barro diariamente.
Nice se apaixonou pela arte com barro desde o primeiro contato na comunidade São Gonçalo Beira Rio, em Cuiabá. (Foto: Bruna Barbosa/Olhar Direto)
Quando secam, as peças de argila precisam passar pela primeira queima, chamada “biscoito”, e, em seguida, podem ser esmaltadas e queimadas novamente para se transformarem em cerâmica. Como não tinha o próprio forno, Nice brinca que acumulava suas produções debaixo da cama, na expectativa de poder queimar.
“Fui aprender por conta de stress, estava em um momento da empresa ser privatizada, já estava há muito tempo lá. Depois da privatização ainda continuei seis anos, mas não aguentei e saí. Fiz concurso da UFMT, porque sou arrimo de família e tenho que ter o provimento. Fui para a UFMT, fiquei dez anos no setor de Compras. Aposentei em 2016 e já tinha meu forno, então já estava na ativa mesmo com a cerâmica”.
Primeira exposição de Nice
Com quatro anos modelando as primeiras peças de argila, Nice decidiu se arriscar: criou três guerreiros do Xingu e enviou para uma exposição "Contemporary Ceramic Exhibition Brazil and England", no Centro Brasileiro Britânico, em São Paulo (SP). As peças dela foram aprovadas e ela mostra orgulhosa o panfleto do evento, onde o nome dela aparece ao lado de 78 artistas brasileiros e 12 ingleses.
"Foi uma motivação muito grande estar nesse evento. Acho que a cerâmica resgata algo na gente, porque o fato de você transformar, do zero, o barro em um objeto é algo muito fantástico. Você pega o barro, que era apenas um saco de barro, de repente vira uma peça utilitária ou uma escultura que vai durar a vida inteira, porque a cerâmica é milenar".
Depois da primeira exposição, Nice não parou mais. Hoje, as peças dela podem ser encontradas na Casa do Artesão e no ateliê dela, onde algumas obras preciosas permanecem seguras em meio ao silêncio de um dos lugares preferidos de Nice. Na parede da primeira sala do local, onde peças produzidas em diversos momentos da carreira montam uma espécie de exposição improvisada, a obra "Os Encantados" chama atenção.
Em uma porta, Nice pregou sete figuras indígenas vestidas com uma "saia" branca. Olhando com atenção, os Encantados da ceramista parecem estar em movimento por conta da leveza com que escolheu construir a obra. Nas pesquisas que fez, ela descobriu que na cultura dos povos originários, os Encantados são pessoas de outro plano espiritual que protegem a natureza.
"Fui fazer um isolamento em Chapada dos Guimarães na pandemia e comecei a trabalhar essas peças. Veio essa leveza, o branco que remete a transparência, porque os Encantados são pessoas de outro plano espiritual. São figuras que os povos originários dizem que são pessoas desencarnadas, mas que habitam ali em defesa da natureza e dos povos. Alguns desencarnam mesmo sem a morte, às vezes a pessoa desaparece. É uma crença muito forte entre eles".
Algumas das figuras indígenas possuem um risco em tinta vermelha que simboliza a morte. Nice explica que o detalhe artístico significa que o sangue já foi derramado.
"A maioria deles morre em defesa do território e eu quis homenagear. Essa inspiração veio nesse silêncio do meu isolamento. Não faço modelagem copiando, tentando fazer uma pessoa específica, por exemplo. As figuras vem. Claro que eu pesquiso bastante primeiro quando algo me chama atenção, pesquiso para conhecer a história".
Obra "Os Encantados" nasceu depois de nice pesquisar sobre história de indígenas que protegem a natureza. (Foto: Bruna Barbosa/Olhar Direto)
Cerâmica, fantasia e criatividade
Nice nasceu em Chapada dos Guimarães, onde viveu a maior parte da infância na zona rural. Quando tenta entender o por quê das figuras indígenas aparecerem quando fecha os olhos para criar as esculturas modeladas, ela lembra do passado na natureza.
"Eu tenho muita ligação espiritual com a natureza. Meu pais sempre foram da área rural, minha infância foi nos sertões da chapada. Eles tinham um sítio e papai às vezes no garimpo. Era sobrevivência mesmo. Viver na zona rural criou uma ligação com a natureza. Meu pai nasceu no Maranhão, na beira da aldeia dos Guajajaras".
O processo de imersão de Nice na cerâmica é tão profundo que ela brinca ter impressão de que as figuras indígenas, que sempre são reproduzidas com olhos entreabertos, estão vendo ela de alguma forma. Pela experiência com a cerâmica, as mãos habilidosas da artista poderiam produzir peças em outros estilos, mas ela sempre busca deixar um "detalhe" da cultura indígena.
"Quando faço esses olhos entreabertos, tenho a impressão que eles estão me vendo, mesmo que eu não veja. Isso vem sempre quando estou nessa parte do trabalho. As máscaras me fascinam muito.
Procuro colocar nas utilitárias alguma característica indígena, como grafismo ou algo da natureza. Uma coisa que estou percorrendo, que as coisas vão acontecendo e a gente vai encaminhando. Ano passado, quando acabou a pandemia, tivemos bastante procura".
Nice sempre busca colocar a própria assinatura criativa em cada uma das peças que produz. (Foto: Bruna Barbosa/Olhar Direto)
Em 2016, ao lado de Lucileicka David, que foi uma das artistas que a motivou a seguir no caminho das figuras indígenas, nasceu o coletivo Ceramistas do Mato. Até hoje, Nice continua coordenando o grupo. Ela conta que, sempre que consegue algum contrato comercial, busca dividir entre os artistas do coletivo para que todos possam produzir.
"Deu muito certo, uma época fazíamos compras coletivos, comprávamos mais de uma tonelada, porque não tinha argila boa aqui em Mato Grosso, depois uma de nossas colegas começou a vender na loja dela. Ano passado, quando acabou a pandemia, tivemos bastante procura. Trabalhamos com o Sesc daqui, do Pantanal… quando consigo esses contratos, multiplico dentro do coletivo".
Para o futuro, Nice pretende continuar com as mãos sujas de barro e o ateliê enfeitado por peças. Por conta dos anos de dedicação ao coletivo, ela pretende se dedicar para tirar do papel o sonho de uma exposição individual em 2024.
A ceramista comemora o reconhecimento que conquistou no mundo da arte e brinca que a neta descobriu na internet que a avó tem a história amplamente divulgada.
"Para esse ano não, porque ano passado fizemos a exposição do coletivo no Sesc Arsenal, esse ano quero planejar um trabalho individual. Trabalho muito coletivo e minha produção vai ficando um pouco para trás. Neste ano quero me preparar para o ano que vem".