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Notícias / Artes visuais

Após ter obras censuradas em Cuiabá, exposição de Gervane de Paula vence edital de circulação da Funarte

Da Redação - Isabela Mercuri

O artista plástico cuiabano Gervane de Paula recebeu, na última segunda-feira (5), em seu ateliê, a curadora de artes visuais e crítica de arte Daniela Labra e o professor-doutor da Universidade Federal de Mato Grosso Laudenir Antônio Gonçalves. Com eles, o artista vai reorganizar sua exposição ‘Mundo Animal – Uma Provocação’, contemplada no “Prêmio Funarte – Conexão Circulação Artes Visuais”, que viaja para Belo Horizonte e para Campo Grande ainda neste ano.

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A mostra foi exposta em Cuiabá em 2016, na Galeria Arto, mas será reformulada. “E em adicional posso reapresentar em Cuiabá, porque a exposição cresceu também. Ela vai ganhando novas obras, novos elementos, então há possibilidade de não ter a mesma cara da original. Eu acredito que ela pode ficar melhor com a ajuda deles. A primeira fez eu fiz ela sem curadoria, a escolha foi praticamente autoral, eu mesmo resolvi colocar tudo o que eu tinha feito dentro da galeria”, contou Gervane ao Olhar Conceito.

Gervane de Paula (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)

Daniela Labra, convidada pelo artista para fazer a curadoria, é doutora em História e Crítica da Arte pela PPGAV EBA/UFRJ e pesquisadora pós-doutoranda na ECO/UFRJ desde 2014. Atualmente, ela vive em Berlim e é curadora independente. “O projeto já existe. Acho que a gente só está somando com o Gervane, ajudando a organizar um pouco melhor as ideias”, afirma. “O que a gente começou a organizar agora acho que é começar a pensar esse monte de peças, um pouco mais organizadas no espaço, mas também um organizado à moda Gervane. Acho que não se trata de pegar o trabalho do Gervane e colocar numa caixinha mínimal, ele não é um artista minimalista definitivamente, então acho que não se trata... ninguém está querendo domesticar a obra de ninguém aqui não”.

Daniela Labra (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)

‘Mundo Animal’ foi inscrito no edital da Funarte em 2016, e contemplado no final do mesmo ano, com a segunda maior nota. Foram mais de duzentos inscritos, e dez escolhidos para percorrer diferentes galerias pelo país.

A exposição

Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto

Composta inicialmente por trezentas obras, a exposição ‘Mundo Animal’ traz críticas políticas, sociais e religiosas, como toda a obra de Gervane. Quando foi exposta na Arto, em 2016, algumas telas tiveram de ser cobertas, após reclamações de visitantes. No ano seguinte, o artista foi vítima de censura novamente, na exposição ‘Amo Cuiabá’, realizada no Pantanal Shopping. Ali, duas de suas obras foram retiradas depois da ‘denúncia’ de um jornalista, que visitou o local e postou um vídeo nas redes sociais.

As obras em questão fazem parte da mostra que venceu o edital, e, por este motivo, o artista, junto aos curadores, pensam em estratégias para que a mesma coisa não aconteça novamente. “O momento não é pra essa forma de enfrentamento, porque o retrocesso está muito grande. Nós estamos vivendo no Brasil, então pra que enfrentar?”, questiona Laudenir, que é docente Associado I no Departamento de História da UFMT, em Rondonópolis, membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e atua como pesquisador, crítico de arte e animador cultural desde 1986.

Laudenir (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)

Para Daniela, o principal é enfrentar a onda conservadora com ‘elegância e inteligência’. “A estratégia da inteligência do pensamento. Nós estamos exatamente conversando sobre como a gente pode informar, informar é fundamental. Informar ao visitante, através de textos, e sinalizações diversas, e pensando na própria montagem da exposição”, garante. Segundo a curadora, a exposição deverá ter uma classificação indicativa, mas não a censura da idade.

“A organização do espaço dos trabalhos ajuda. A gente estava agora há pouco falando sobre isso, textos que complementem a recepção dos trabalhos no próprio espaço (...) Porque quando a gente vê uma parede coberta de cruzes, por exemplo, o foco do Gervane não é ‘estou falando mal do catolicismo, ponto’. Não! Mas vai entrar o radical e falar: ‘ah, você está ferindo a minha igreja, [você é] cristofóbico... Então, pra ele não ser acusado de cristofobia, esse termo tão pungente, a gente vai explicar que justamente não se trata de cristofobia. Que Cristo é um elemento, dentre os  diversos elementos que a obra com as cruzes aborda. A cruz é um símbolo mundial, universal, significa tanta coisa... significa morte, vida, religiosidade, fertilidade da terra, sofrimento, louvor, na cultura mexicana as cruzes são utilizadas de diversos modos, junto com as caveiras, endeusando a morte, ou agradecendo a colheita... sei lá, gente. É sobre isso que a gente vai estar falando, as diversas possibilidades de leitura das obras, e é isso que a gente pretende passar pro visitante, pro público, pra tentar desconstruir essa visão rasa e binária, que por sua vez é bastante ignorante”.

Gervane garante, no entanto, que a exposição ‘não é só isso’. “Minha natureza é pós-70, geração 80... somos artistas irreverentes, alegres, que gostam de cores, e eu herdei isso tudo. É alegre também. E também tem muita ligação com o ambiente, não sei se é regional, mas acredito que eu sou bastante regional também...”.



Apesar do regionalismo presente em sua obra – lembrado, por exemplo, no nome dos políticos mato-grossenses – Daniela afirma que as questões abordadas por Gervane extrapolam as fronteiras. “A obra do Gervane tem uma pegada regional, sim, mas ao mesmo tempo fala das estruturas de poder que se replicam por todo o país, e a gente pode avançar um pouco mais, e falar de situações na América Latina. As estruturas de poder e de exploração da droga, do tráfico, da milícia, da morte, da PM, do corpo, da sexualização da mulher, da prostituição infantil, tudo isso que está na obra dele, diz respeito à América Latina”.

Por ser tão atual e relacionada à verdade – apesar de não ser notícia – é que sua obra causa tanta inquietação. “O trabalho dele é provocativo, mas a partir de coisas que ele observa no cotidiano, no dia a dia dele, da cidade, dos acontecimentos, no jornal, na TV... ele simplesmente estetiza o que está percebendo no mundo. O que está acontecendo, e nisso não tem nada de mal, isso está colocado, está escancarado pra todo mundo ver. Só que quando ele estetiza, ai aparece toda essa hipocrisia”, comenta Laudenir.

Como consequência, o público se sente afetado. “No caso do trabalho do Gervane e de tantos outros artistas que foram achincalhados, enxovalhados e perseguidos ano passado, em geral eram obras com narrativas mais explícitas, e que dizem respeito a um contexto que nós vivemos, ao mundo. Se você acha que aquilo diz respeito à sua religião, aquilo vai destruir a sua família, aquilo vai acabar com o seu filho, é porque enfim, estamos com um problema ali de entender que a sua religião, você e seu filho fazem parte de um contexto imenso, enorme, cheio de contradições, de paradoxos e de coisas erradas. A arte não traz a coisa errada, a arte nos faz pensar, e o trabalho do Gervane é absolutamente sobre isso”, finaliza.

Serviço

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