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Notícias / Comportamento

Psicóloga critica censura a exposição: é necessário ajudar as crianças a interpretar a realidade, não escondê-la

Da Redação - Isabela Mercuri

Depois da retirada da exposição “Cinco Elementos do Cerrado”, de Tchélo Figueiredo, do Goiabeiras Shopping no último domingo (13), diversas pessoas se posicionaram contra o local onde as fotos foram expostas. O argumento foi claro: no shopping passam crianças, e crianças não sabem lidar com a imagem de um corpo nu.

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Esconder dos menores a existência do outro e da sexualidade tem sido tarefa difícil para os pais, que se encontram cada vez mais perdidos na criação. Entre mostrar demais e mostrar de menos, muitos escolhem colocar vendas nas crianças para que somente quando começarem a se interessar, por si só, pelo corpo alheio e pelo seu próprio, busquem formas de sanar suas dúvidas. Seria este o caminho?

A psicóloga, doutora em educação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP), professora do curso de psicologia da UFMT e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Psicologia da Infância, Daniela Freire, deu uma entrevista ao Olhar Conceito falando especificamente sobre este assunto.

Daniela relembra que é impossível esconder a nudez de seus filhos, seja ela erotizada nos comerciais de televisão ou artística. A escolha dos pais está em explicar o assunto ou deixar para que eles ‘aprendam’ em outros locais.

A psicóloga discute, ainda, o papel social do Shopping. Hoje, visto como um local ‘seguro’ e sem função educativa, o espaço poderia repensar sua função, buscando o apelo cultural, o que faria com que a população, aos poucos, lidasse melhor com propostas como essa.

Leia a íntegra da entrevista:

OC -  Qual a relação da criança com o corpo nu de um adulto?

Daniela -
O corpo é a primeira referência que a criança possui que a possibilita estabelecer sua relação com o mundo. O contorno corporal da criança se constitui na relação com o outro corpo, no caso o de sua mãe ou o de quem a materna. Um dos momentos mais emblemáticos da relação da criança com o corpo nu se dá no ato da amamentação. Além disso, o movimento do corpo também é um importante elemento que promove o desenvolvimento, a emergência da inteligência prática que anuncia as condições para o desenvolvimento das operações mentais mais abstratas.

Assim a criança aprende a interpretar o mundo por meio do corpo e de seu movimento.

OC - Com que idade ela começa a entender que o corpo é diferente, ‘se interessar’ por ele?

Daniela - O corpo vai sendo significado pela criança a medida que sua capacidade intelectual se desenvolve, de forma que em cada idade o corpo é percebido e interpretado de diferentes formas.

Vamos dividir em grandes períodos: a primeira infância até seis anos, de 6 a 12 anos e de 12 em diante. Na primeira infância a criança identifica diferenças anatômicas, aprende a nomear tais diferenças conforme a cultura designa o sexo (cujo critério mais utilizado é a referência biológica tal como descrita cientificamente), neste período o grande desafio da criança é compreender o significado do ser homem e do ser mulher ainda muito atrelado pela significação que lhe é apresentada pela cultura. Então o corpo pode ser entendido como importante referencial identitário.

Com o desenvolvimento intelectual e com a capacidade de nomear sentimentos desenvolvidos a criança passa a compreender os diferentes significados sobre o corpo que circulam na cultura um deles é o erotismo, que de certa forma atravessa a infância e discussões sobre a erotização das crianças tem sido levantadas alertando para o fato de adultos tratarem o corpo infantil como um corpo maduro sexualmente falando. Mas também essa erotização encontra a criança dentro de sua própria casa pela via da televisão e conteúdos midiáticos em geral como uma propaganda de cerveja, por exemplo.

Muitos são os debates sobre a construção de um corpo feminino como objeto, no caso da propaganda de cerveja quando a própria garrafa se transmuta em um corpo de mulher ou vice versa.

A forma como a sociedade trata o nu, banalizando, transformando os corpos em objeto de manipulação do desejo do outro é um dado que passa a ser compreendido e muitas vezes naturalizado pelas crianças.

Isso para não falar do abuso sexual de crianças muitas vezes realizado por pessoas conhecidas e até parentes muito próximos. Tal assunto, ainda tabu na nossa sociedade, segue silenciado pelas famílias e pelos educadores.

Esta criança quando chega na adolescência pode assumir uma sexualidade ancorada nos significados que lhes são apresentados pela cultura, pelos grupos sociais aos quais ela pertence. O corpo nu pode ser significado como objeto a ser usado conforme o desejo do outro, portanto um corpo fragmentado e submisso, mas também pode ser um corpo integrado as dimensões do afeto e do pensamento. Um corpo que pensa, sente e age de forma coerente e criativa.

Os processos de formação da pessoa humana realizados no interior dos grupos familiares, educacionais, religiosos e por meio dos processos de comunicação de massa poderão contribuir para a relação que o ser humano estabelece com o corpo nu, especialmente pela forma pela qual significam a nudez.

OC - É diferente a relação que a criança tem com o corpo dos pais (que ficam pelados em casa, por exemplo), com outros corpos (como o dessas fotos)?

Daniela - Os principais mediadores que a criança possui para compreender o mundo são seus familiares, Quanto menor é a criança mais influenciada ela é pela visão de mundo dos adultos, aos poucos e, se autorizada por eles, desenvolve sua forma de pensar com diferentes graus de autonomia até a vida adulta.

Existem muitos contextos em que a nudez aparece. Ela pode ser significada como corpo biológico tal como aparece nos livros de ciência quando a criança estuda o aparelho reprodutor, pode ser uma nudez erotizada, pode ser um corpo nu sem vida ou um nu artístico. Em cada contexto teremos significados diferentes.

Neste sentido, a relação que a criança estabelece com a nudez, seja de quem for, passa pela significação que é atribuída à ela.

OC - Algumas pessoas reclamaram dizendo que seria necessário uma ‘classificação indicativa’ na exposição. Outras argumentaram que as fotos não eram sensuais / sexuais, e por isso não precisaria. O que seria ‘o certo’?

Daniela - Vi a exposição no shopping e de fato concordo que não era uma nudez erotizada, mas admito que havia uma referência à sensualidade, um significado possível para a nudez. A sensualidade oral quando uma pessoa chupa um caju por exemplo é mais percebida pelo adulto que possui a capacidade de simbolização mais desenvolvida. Uma criança pequena provavelmente não se atentará para esse significado mesmo que veja a mulher com o caju na boca.

No geral o que se vê são corpos de mulheres em exercício criativo, um corpo que se transforma em uma narrativa. Não é apenas um corpo feminino nu que se mostra literalmente mas sim um corpo feminino nu inserido em um contexto maior que convida a uma narrativa, a se contar uma história, O nu não é o apelo principal.

O que me parece que ficou deslocado foi o lugar da exposição. Sobre isso podemos pensar em muitos aspectos especialmente porque o principal apelo de um shopping não é o cultural embora seria ótimo que fosse. O público que ali esta é muito variado e pode significar o nu artístico de formas antagônicas e isso explica reações de aplausos e de rejeição. No entanto, se o shopping definir por essa linha de trabalho assumindo uma função educativa articulando ações culturais com ações de consumo (isso já é realidade em outros lugares) talvez a população, paulatinamente, lide melhor com a proposta.

A questão aqui não passa pela criança mas sim pelos adultos, pelo projeto cultural que o shopping quer assumir e pela articulação das ações que tem exercido em nome da cultura.

OC - Até que ponto os pais devem esconder de seus filhos a existência da sexualidade / corpos nus, quando isso se torna repressão?

Daniela -
Os pais conseguem esconder? Neste país onde o corpo nu é uma questão fortemente marcada pela cultura? Não conseguem não é mesmo, como não escondem da criança a violência, a miséria, o abandono, a competição. Podemos escolher entre ajudar a criança a interpretar a realidade ou deixar esta tarefa para outros agentes sociais.

A Arte é um caminho que pode nos ajudar por meio do seu condição de anunciar novas possibilidades.

OC - Como um pai, ao passar pelas fotos no shopping, poderia explicar para seus filhos sobre aquilo?


(Foto da exposição de Tchélo, retirada do Shopping)

Daniela -
Não necessariamente precisa explicar. Muito provavelmente a criança se interesse pela tatuagem da moça, ou pela cabeça de boi dela. O corpo nu não é a única imagem na cena retratada.

É preciso perceber o que de fato mobilizou a atenção da criança e, se for o corpo nu então esta seria uma ótima oportunidade de apresentar a diferença entre um corpo objeto que é aquele que aparece na televisão da própria sala de casa para um nu artístico.

Mas entendo que essa possibilidade não é possível para todas as famílias.

8) Para você, a exposição estava em local inadequado, por não estar ‘escondida’ das crianças?

Daniela -
As crianças tem o direito à cidade e à cultura, isso deveria ser inegociável. Mas são as famílias que definem onde elas podem circular.

Há um contrato tácito que o shopping é um lugar ¨seguro¨ para crianças circularem sem que nenhum perigo as aflijam. O shopping, de certa forma, vende essa ideia de segurança. A segurança,para a maioria das pessoas, pressupõe controle, linearidade, norma. O contrário disso seria o imprevisto e o estranhamento diante do novo.

Penso que o dissenso se deu muito em função desta contradição. A Arte com seu potencial criativo em um espaço conhecido e valorizado como normativo.

Na minha compreensão o shopping deve pensar em seu projeto cultural com maior determinação e perceber a importante função social deste investimento. No entanto, é preciso considerar que diferente de uma galeria de Arte, onde o público busca o novo como experiência, no shopping circulam pessoas pouco disponíveis a se deixar mobilizar pelo poder criativo de uma obra de Arte.
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