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Terça-feira, 16 de abril de 2024

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Diretora de 'Que Horas Ela Volta?', Anna Muylaert, comenta machismo e o espaço das mulheres no cinema

Embora esteja no melhor ano de sua carreira, as coisas não têm sido fáceis para Anna Muylaert. A cineasta paulistana de 51 anos, diretora e roteirista da comédia dramática Que Horas Ela Volta?, tem enfrentado o pior lado do sucesso: os ataques. E, nesse caso, machistas. Mais uma vez, a mulher fazendo sucesso é alvo de egos masculinos.

Caso você ainda não saiba, o filme de Muylaert é o maior sucesso do cinema brasileiro de 2015. E ele é protagonizado por uma empregada doméstica nordestina.

Na trama, Val (interpretada por Regina Casé) cozinha, lava e passa em uma casa de família no bairro nobre do Morumbi, em São Paulo. Ela deixou Pernambuco para trabalhar na "metrópole das oportunidades". Sua filha, Jéssica, também ficou para trás, sendo sustentada por Val à distância. A empregada se torna quase um membro da família da elite paulistana. É querida e praticamente uma segunda mãe para o filho do casal, de quem tem total confiança.

Uma década depois, Jéssica (Camila Márdila) viaja a São Paulo com ambição de prestar o vestibular. Ela quer estudar arquitetura e urbanismo na USP. Ao contrário da mãe, Jéssica tem autonomia, confia em seu taco e não gosta nem um pouco dessa história da mãe receber ordens. A estabilidade naquela casa vai estremecer. No elenco também estão Michel Joelsas, Karine Teles, Lourenço Mutarelli e Helena Albergaria.

Que Horas Ela Volta? ganhou no Festival de Sundance deste ano um prêmio especial do júri pelas atuações de Casé e Márdila. No Festival Berlim, conseguiu o prêmio da mostra Panorama. O filme tem sido exibido em diversos países e deixou a crítica nacional e internacional em alvoroço; ganhou quatro estrelas no Guardian; a Hollywood Reporter chamou as atuações do filme de "maravilhosas"; o Cinema em Cena avaliou com cinco estrelas; o Omelete como "ótimo".

Em meio a isso tudo, os cineastas Cláudio Assis e Lírio Ferreira, recentemente, estragaram um debate em Recife sobre o filme de Muylaert. Os dois dispararam diversos machismos contra diretora, obra e atriz protagonista. Pediram desculpas, como você pode ver aqui e aqui.

"Os homens sempre estiveram no centro do palco e, a mulher, na plateia aplaudindo", diz a diretora em entrevista ao Brasil Post. "Quando você chega ao ponto em que seu filme vale dinheiro, você chega na zona masculina."

Muylaert tem história no entretenimento brasileiro. Foi roteirista de séries de TV antológicas, como Mundo da Lua e Castelo Rá-tim-bum, e no filme O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006). Dirigiu e escreveu Chamada a Cobrar (2012), É Proibido Fumar (2009) e Durval Discos (2002). Os dois últimos, em especial, são elogiados e ganhadores de prêmios.

Mas nenhum filme deixou o nome da diretora tão em evidência quanto Que Horas Ela Volta?, inspirado na história da babá da própria Muylaert. Identidade, expansão do poder aquisitivo das classes mais pobres do Brasil e maternidade são alguns dos temas em que o filme toca.

Na entrevista abaixo, a cineasta comenta essas questões, além do machismo no meio do cinema brasileiro e a possibilidade de sua obra ser a escolhida do Brasil para tentar uma vaga na categoria de melhor filme estrangeiro do Oscar de 2016.



Recentemente, aconteceu o episódio com Cláudio Assis e Lírio Ferreira. Você comentou à Folha que está conhecendo esse "clube de homens" cineastas cujos filmes fazem sucesso internacional. O meio do cinema brasileiro é machista?

[Aqui no Brasil,] Mulher fazer cinema, tudo bem, mas quando ela se destaca, esse mundo do dinheiro, dos negócios, do destaque, ele é masculino. Eu tinha sentido, sim [discriminação de gênero], no começo da carreira, por eu ganhar menos que meu colega, mas não nos últimos anos. Os filmes que alcançaram esse nível de destaque [de Que Horas Ela Volta?] são todos de homens. É a primeira vez que uma mulher brasileira tem um filme vendido [para outros países] e destaque na imprensa nacional e internacional. Aí os homens não sabem como reagir. Eles tendem a acreditar que não foi uma mulher que fez isso. Quando a mulher tem destaque, eu sinto bastante machismo.

Como solucionar esse problema?

A gente tem que falar disso. E essa questão não é só pertinente aos homens. O machismo não é praticado só por eles, mas pelas mulheres também. Machismo é um conjunto de regras com as quais a gente é educado há milênios, onde o homem fala e a mulher cala, o homem age e a mulher observa, o homem é ativo e a mulher passiva. Na hora em que a gente começa a discutir tudo isso – acho que não só homens, mas nós mulheres também –, começamos a observar melhor e entender por onde isso está acontecendo. Por exemplo: por que que se chama a Dilma de "gorda" o tempo inteiro? "Gorda", "feia", "mal vestida". Ninguém chama o Lula de "gordo". A Dilma é "gorda", mas o Lula não é. Por quê? Chamem a Dilma de "péssima", de "má presidente" [se for para criticá-la], mas de "gorda"?! Isso é uma atitude machista. E a gente tem que começar a perceber que não repara quando faz isso. É uma questão do mundo inteiro. A americanas estão loucas com isso.

Você se considera feminista?

Atualmente, sim. [risos] Claro que sim.

Ainda falando de mulheres, a Val, do seu filme, é incrível. Ela é pobre, trabalhadora, nordestina. O que você acha que a Val significa no Brasil atual, em que as classes mais pobres têm maior poder aquisitivo, acesso às universidades etc.?

A Val representa o antigo Brasil, de regras separatistas. Ela é a força da mulher, o afeto. Muito do brasileiro simpático, que se conhece no exterior, vem de pessoas como a Val, que são realmente simpáticas, afetivas, trabalhadoras. Ela é uma mulher totalmente forte e honesta. Porém, se acha inferior aos outros e está de acordo com essa situação – mas a filha dela não. Ela [Jéssica] é uma nova geração, um novo pensamento, não se acha inferior.

As mulheres de seu filme, Val e Jéssica, são memoráveis. Você acha que a representatividade da mulher nas telas do cinema brasileiro precisa de mais mulheres assim?

Sim, não só no cinema brasileiro, mas no mundial também. A gente aprendeu na escola que os poderosos que escreveram a história, os vencedores, são os homens, na verdade. Toda nossa história é vista do ponto de vista masculino. Mas, a partir dos anos 1960, a mulher se instrumentalizou. Tanto no cinema quanto em outras profissões. Agora é hora de mostrar o ponto de vista do outro lado. E eu acho que esse filme fala de maternidade. É a criança do ponto de vista da mãe, que é diferente do ponto de vista do pai. Não que seja melhor ou pior, mas são duas histórias diferentes, dois olhares diferentes. O diretor não precisa ser homem ou mulher, necessariamente – é o olhar que tem que ser diferente. É o olhar yin e o olhar yang. Um é mais contemplativo e o outro mais ativo. Tanto é que criaram lá nos Estados Unidos o teste Bechdel, que mostra se, em um filme, a mulher tem um papel que reforça o mundo machista.

Você dirigiu o filme brasileiro mais pop do ano. Seu nome está rolando bastante lá fora, assim como os de Regina e Camila. O filme ganhou prêmio em Berlim e Sundance. Você sente um frio na barriga?

É uma sensação boa e normal. Eu acredito na potência do filme. Acho que ele realmente tem o poder de abrir diálogo, mas ao mesmo tempo, esse "sucesso" traz muitos problemas. Então acaba sendo um trabalho normal. O sucesso é um excesso de trabalho. Eu trabalho muito, estou muito cansada, longe dos meus filhos, sendo atacada, levando rasteira. Eu não estou sentada na minha casa tomando suco de abacaxi e curtindo o mundo. Estou lutando como talvez nunca lutei antes na minha vida. Estou muito feliz porque meu trabalho se realizou, minha equipe é incrível e fez um trabalho incrível. Ganho uma chuva de elogios e declarações de amor, mas tem o outro lado.

Me dê um exemplo desse outro lado.

Quando você chega ao ponto em que seu filme vale dinheiro, você chega na zona masculina. Em Berlim, por exemplo, nós vendemos o Que Horas Ela Volta? para um distribuidor estrangeiro. Tivemos uma reunião eu, ele e meu coprodutor. O distribuidor disse que gostou do filme, que achou incrível, que os personagens são incríveis. E ele só olhava para o coprodutor. Em nenhum momento olhou para mim. Foi como sugerir que, se o filme é bom, o responsável por ele é um homem, e não uma mulher. Isso é uma coisa pequena, mas é humilhante e deprimente. O meu produtor não escreveu, não dirigiu, não montou, ele simplesmente introduziu o filme. Mas toda a responsabilidade artística é minha, e não dele. Então, se o distribuidor estava comentando a parte artística, por que ele não olhou para mim? Aí eu fico me sentindo mal. Esse é um exemplo, mas existem vários outros.

E esse papo de Oscar? Tem bastante gente por aí fazendo campanha para Que Horas Ela Volta? ser indicado ano que vem.

Até o momento presente, não levo isso a sério. Fico feliz que estejam dizendo boas coisas. Estão vendo a qualidade de filme, mas não levo isso a sério. Na medida em que ele seja o escolhido do Brasil [para competir pela vaga], nós vamos trabalhar para que isso se torne verdade, mas ainda está muito longe de se concretizar. Eu tenho 50 anos e não vou viver de ilusão. Não vou comprar o bilhete da loteria achando que vou ganhar. Ainda falta muito para isso se tornar realidade, mas chance tem. É um bom filme, que fala de questões universais, vendeu em vários países, fez sucesso no mundo todo. Mas eu não lido com essa fantasia, não.

Você tem conselhos para dar às mulheres que querem fazer cinema? Seja dirigindo, roteirizando, produzindo...

Cinema é complicado para qualquer um. Homens, mulheres, brasileiros, americanos. É uma das zonas mais perigosas do mundo, porque é arte ao mesmo tempo em que é negócio. É um trabalho feito em vários níveis. O diretor de cinema tem que entender de ritmo, de direção de ator... É uma coisa complexa para todo mundo. Meu conselho é: trabalhem, mostrem [seus trabalhos] para os outros, questionem. No fim das contas, com machismo ou sem machismo, o que deita é o resultado.

Que Horas Ela Volta? está em cartaz desde 27 de agosto.
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