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Segunda-feira, 17 de novembro de 2025

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repressão em MT

Aos 84 anos, idoso carrega sequelas da ditadura e memória viva da tortura: 'iam me jogar no Portão do Inferno'

Foto: Ricardo Cruz/@eiricardocruz

Aos 84 anos, idoso carrega sequelas da ditadura e memória viva da tortura: 'iam me jogar no Portão do Inferno'
No final da tarde de 9 de maio de 1979, Rubens Pinto Fiuza, de 84 anos, foi liberado, com sangue da cabeça aos pés, do porão da Delegacia de Ordem Política e Social (Dops), que ficava no subsolo do Palácio Alencastro, onde hoje funciona a Prefeitura de Cuiabá, no Centro. Nas primeiras horas desse mesmo dia, quando saiu de casa para comprar pão para o café da manhã da família, Fiuza foi colocado à força dentro do fusca onde estavam os torturadores. Uma série de coincidências e uma ligação de Roberto França culminaram na liberação de Fiuza, que saiu do Dops já com pouca visão e o rosto deformado pela tortura.


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Quase cinco décadas depois, lágrimas ainda deslizam por baixo do óculos escuro de Fiuza, indispensáveis desde o dia em que foi levado pelo fusca, ao lembrar dos horrores que viveu no fusca em que foi colocado na base da violência. Ele recebe a reportagem do Olhar Conceito na casa em que mora com a família há décadas, no bairro Porto, em Cuiabá. Com ajuda da neta, que nasceu quando Fiuza já não podia mais enxergar, ele estende a mão para cumprimentar a reportagem.

“Eu sou um sobrevivente. Minha história é muito grandona e difícil de arrumar”, adianta o idoso. 

No dia do sequestro, o plano era jogá-lo no Portão do Inferno, prática que ele conta ter sido comum no período da ditadura em Mato Grosso. A primeira coincidência foi que na noite de 8 de maio de 1979, primeira data marcada para sequestrá-lo, o filho machucou o pé. 

“Eles iam me sequestrar à noite, em 8 de maio, mas o Junior machucou o pé e eu tive que ficar em casa para cuidar dele. Então não saí nessa noite, eles ficaram rondando aqui me esperando chegar das reuniões, quase toda noite tinha reunião nas comunidades”, conta o idoso que foi responsável pela criação de mais de 50 associações de bairros em Cuiabá. O processo fez com que bairros como José Pinto, Morada do Sol e Coophamil fossem regularizados. 

Nascido em Dores do Indaiá (MG), as histórias contadas pelo pai sobre o Pantanal, região que ele costumava visitar, o guiaram até Mato Grosso, mais especificamente para Rosário Oeste. “Parece que a vida tem um caminho, uma coisa certa”, diz Rubens ao lembrar que foi na cidade para onde se mudou a trabalho que conheceu o grande amor de sua vida, a esposa Anete, a quem ele se refere como “Netinha”.  

Foram os mesmos caminhos da vida — e a indignação diante dos problemas sociais — que acabaram por levá-lo ao porão do Dops, durante a ditadura em Cuiabá. Na noite de 8 de maio de 1979, o fusca usado pelos torturados não encontrou Fiuza, que não teve a mesma sorte na manhã seguinte, mesmo colocando “a boca no trombone” para chamar a atenção da vizinhança sobre o sequestro, ele foi levado. 

Fiuza e a neta Lívia, que é estudante de Cinema da UFMT, nas gravações do documentário "Seu Fiuza". (Foto: Ricardo Cruz/@eiricardocruz)

“Gritei muito, de repente também estava na rua uma pessoa que entregava pão, o povo foi chegando, então bagunçou todo o esquema deles, mas mesmo assim me bateram demais no carro. Como eu percebi a conversa deles, eu sabia o que fazer. Eles tinham que se livrar de mim, mas deu zebra, me colocaram no porão do Dops”. 

Quando chegou ao subsolo do Palácio Alencastro, Fiuza ouviu os homens decretarem a um guarda que o responsável por tentar derrubar a Nova Era em Cuiabá estava incomunicável. O motivo da violência foi um abaixo-assinado organizado por Fiuza, que recolheu mais de 50 mil assinaturas de cuiabanos que apoiavam a entrada de novas empresas de transporte na cidade. É, então, que outra coincidência atravessa o destino de Fiuza. 

“Falaram com o guarda que eu estava incomunicável, mas ele disse que não me deixaria ficar incomunicável, disse que eu tinha sido muito importante para o pai dele em Alto Paraguai. ‘O primeiro que ligar aqui, vou colocar para falar com você’. Ligou o Roberto França, que era deputado na época”, conta o idoso ao adiantar a terceira coincidência. 

Com ajuda do guarda, Fiuza conseguiu ouvir a voz do político e colega jornalista do outro lado. “Ah, Fiuza, você está aqui, né? Agora vamos para a mídia, vamos colocar a boca no trombone, vamos te libertar. Vamos dar um prazo para esse pessoal te soltar, livre, sem processo nenhum, até às 6h”. 

A comunidade se organizou e começaram a fazer notas para o povo ir para o Centro de Cuiabá, na Praça Alencastro, o povo deu um ultimato, a “mídia socorreu”. “Era um interesse do povo, uma empresa contra Cuiabá inteira.”, lembra Fiuza. Dinamitar nove ônibus, “para começar”, era uma das ameaças. Caso ele permanecesse preso, a aposta dobrava: todos os veículos seriam incendiados. 

“Aí não teve jeito, realmente soltaram. Eles ficaram frustrados e zangados, porque atrapalhou tudo. Apanhei muito no carro. Tenho uma compressão óssea muito forte, onde quebrou soltou, fiquei com problema de fala, estou consertando agora. Machucaram meu joelho também, machucou o corpo todo”. 

“Acabaram com meus olhos, bagunçou tudo. Quando fui liberado [a visão] já estava muito precária, depois veio a cegueira total. Inclusive, eu nem tenho olho perfeito, está tudo estourado, por isso tenho que usar óculos”, continua Fiuza ao elencar as sequelas que carrega até hoje. 



Enquanto tira os óculos escuros e leva uma das mãos até o bolso para pegar um lenço, Fiuza se adianta para justificar a emoção. “Fico falando e fico chorando também, sou muito ‘molera’, ô caboclo mole. Me emociono [ao falar sobre o sequestro] porque é uma realidade e eu escapei. Cheguei a ter a família que eu tenho, que é uma família importante do ponto de vista de progresso. Consegui anistia, que é mais que justo. Não foi fácil”. 

Dentro da casa em que moram no Porto, a ditadura nunca foi um tabu para Fiuza e Anete, que acharam importante contar para os filhos e, principalmente para os netos, sobre a violência da ditadura em Mato Grosso. Em 2018, com a vitória de Jair Bolsonaro para presidente e as manifestações a favor de um golpe militar surpreenderam o idoso. 

“A revolução não produziu nada para o Brasil, assim como o Bolsonaro. Existem figuras brasileiras, grandes vultos nacionais, que fizeram muitas coisas. Juscelino Kubitschek, criou Brasília, isso fica no inconsciente coletivo também. Agora aprontaram uma proteção para bandidos no Congresso, achando que o povo estava dormindo. Mexeu com o povo mesmo. 

Esse pessoal só vive para golpe”, desabafa Fiuza. 

Parte da história dele será contada no documentário "Seu Fiuza", que foi um dos projetos selecionados edital Aldir Blanc, que está sendo produzido pela neta, a estudante de Cinema da UFMT Livia Fiuza. "Sempre tive essa vontade de contar a história dele, porque minha mãe sempre contou sobre o que família passou como um todo, para que eu sempre tivesse essa noção do quão terrível foi. Quando entrei na faculdade, percebi que um documentário era a forma de fazer isso". 

Fiuza e a esposa Anete, que conheceu em Rosário Oeste (MT) quando chegou em Mato Grosso para trabalhar. (Foto: Ricardo Cruz/@eiricardocruz)

Salvo pela leitura 

O idoso lembra que, quando morava em Minas Gerais sempre foi visto como “ousado” e “para frente”. Muitas vezes, os ideias “trombaram” com a visão de outras pessoas da cidade. “Acho que uma coisa que me salvou muito foi a leitura, sempre li muito, tanto que fiz parte da imprensa”, diz Fiuza. 

Filho único e primeiro neto de uma família de origem portuguesa, ele cresceu em meio a contrastes. Os antepassados chegaram ao Brasil e foram acumulando terras até se tornarem donos de quase dois municípios, ricos o bastante para manter casamentos entre primos de primeiro grau e investir na criação do gado zebu. 

“Um dele [do boi indiano] valia 100 bois daqui, era muito caro. Meu pai tinha duas fazendas que minha avó deu para ele. Ele deu garantia e, de repente, o Governo que sempre faz coisa muito bonita, nivelou o preço do boi da Índia com o boi daqui, caiu tudo, ele tinha um financiamento elevado, perdeu as fazendas, ficamos ‘pobrezinhos’ pra danar, minha filha”. 

A ruína, no entanto, não durou muito. A família se mudou para uma propriedade no sertão, onde o pai passou a plantar arroz. Por ironia do destino, naquele mesmo ano o preço do cereal disparou, devolvendo a estabilidade. Foi nesse vai e vem de perdas e conquistas, num “panorama neurótico”, como define, que ele passou a infância.

Entre as figuras que marcaram sua vida estava o médico Tássio de Guimarães, que atendia sua avó e via no menino um futuro promissor. Foi ele quem o incentivou a estudar em Minas Gerais, na escola de agricultura da Universidade Rural. “Sempre me salvei pela leitura”, conta. Estudioso, conseguiu bolsa e ingressou em 10º lugar. 

Passou pelas Lojas Americanas, fez cursos, mergulhou na epidemiologia da malária e, já mais maduro, foi nomeado diretor regional em Patos de Minas (MG). Era o início de uma trajetória de liderança. Mas o destino voltaria a virar. 

Durante uma greve por melhores salários e condições de trabalho das funcionárias da epidemiologia, estourou a revolução de 1964. Fiuza sentiu que seria perseguido. “Pensei: puxa vida, estou preso. Catei tudo o que tinha e sumi.” Refugiou-se na fazenda Morro Feio, onde viveu escondido, cercado pelo minério de manganês e pela incerteza de até quando poderia se manter longe dos olhos da repressão.

“Fico comemorando porque escapei e estou aqui ainda depois de tudo isso”, celebra Fiuza.
 
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