Nos fundos do bairro Santa Rosa, em Cuiabá — conhecido pelas casas de alto padrão e pela proximidade com a avenida Miguel Sutil, uma das principais da cidade — começa o Novo Colorado. A paisagem muda quando prédios com uma sacada por andar e residências de luxo dão lugar a construções simples. Foi em uma dessas casas sem reboco, na esquina da avenida principal, que cresceu Flávio Castro de Lima, o
“Sapinho”, que acaba de virar filme. Ainda adolescente, se envolveu com o crime e ficou conhecido por “fazer Justiça com as próprias mãos”, mas nas ruas, a marca que deixou foi outra: a de “justiceiro”, “paizão” e “gente boa”.
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Nem mesmo os crimes de tráfico e homicídio diminuiram o afeto da comunidade por ele. Na casa onde Sapinho passou a infância ainda vive sua mãe. De touca de cetim, ela evita falar sobre o filho. “Fizeram um filme sobre ele e ninguém veio falar comigo, estão ganhando milhões com o nome dele”, diz a mulher que, logo em seguida, entra no imóvel. Minutos depois, ela fecha a porta, deixando claro que não pretende falar sobre Flávio.
Ela se refere ao
filme “Cinco Times de Medo”, que levou quatro prêmios no Festival de Cinema de Gramado neste final de semana. Dirigido pelo cineasta Bruno Bini, o longa tem um personagem inspirado em Sapinho, o traficante querido pelos moradores do Novo Colorado, que chegaram a organizar rifas e bingo para pagar a fiança dele nos anos 2000.
Na ficção, ele é interpretado pelo rapper Xamã, que ganhou o prêmio de Melhor Ator Coadjuvante no mesmo festival. Cenas do filme, inclusive, foram gravadas no bairro em que Sapinho cresceu.
Em uma das ruas perto da casa em que ele morava, um jovem se surpreende ao saber que a existência do traficante herói foi eternizada e passará nos cinemas. “Ele acharia massa se tivesse aqui para ver isso, que privilégio”, diz.
“Não conheci o Sapinho, mas sei da história dele, muitos moradores do bairro ainda lembram. Ele não deixava acontecer assalto aqui. Sei que era um cara gente boa”, continua.
Moradores do Novo Colorado chorando a morte de Sapinho em 2018. Eles ainda se uniram para custear o velório. (Foto: Ednilson Aguiar/O Livre)
Em 2007, o medo dos moradores do Novo Colorado foi de ficarem desprotegidos enquanto Sapinho estivesse na cadeia. A mobilização chamou atenção da imprensa, que noticiou o fato curioso de uma comunidade que se unia para proteger alguém que era parte do mundo do crime.
No portão de uma das casas, a marca de um tiro resiste ao tempo e guarda a lembrança de um episódio violento na avenida principal do bairro. Sapinho ficou preso por 11 anos e foi morto oito meses após conseguir a liberdade, depois de se envolver em um assalto.
Vida antes de ser Sapinho
Flávio cresceu sem conhecer os luxos que o dinheiro pode comprar. Uma das moradoras de décadas do Novo Colorado, conta que ele começou a trabalhar cedo, por volta dos 12 anos. Ainda pré-adolescente, atravessava as fronteiras entre a pobreza e ia à parte mais rica perto de casa para cuidar dos carros que paravam em frente ao Hospital Santa Rosa.
“O que sei é que Sapinho era muito trabalhador, desde criança. A família sempre foi muito pobre, ele era acolhido por um e outro do bairro”, conta.
“Foi aqui nessa rua que ele cresceu, lembro de ver ele criança aqui pela rua. Desde pequeno já era o líder dos colegas que tinha aqui. Quando cresceu e seguiu por um caminho não tão bom, ele voltou a ser um líder”, diz a mulher apressada para sair.
Ela explica que aos 16 anos, Sapinho foi apreendido por homicídio, permanecendo 1 ano e 8 meses no Centro Socioeducativo (antigo Pomeri). Apesar de ele nunca ter usado drogas, garante a moradora, começou a cometer assaltos e, mais tarde, fazia “Justiça com as próprias mãos”.
Era comum que moradores do Novo Colorado procurassem Sapinho para pedir algum tipo de ajuda. “Aqui no bairro ele ficou conhecido como justiceiro. Se o pessoal do Ribeirão do Lipa ameaçava invadir, ele resolvia. Protegia todo mundo aqui, era um protetor”, diz.
Casa em que Sapinho foi morto no Novo Colorado. (Foto: Ednilson Aguiar/O Livre)
Sua morte aconteceu em agosto de 2018, após participar de um assalto no Jardim Mariana. Baleado no abdômen, ficou escondido em uma casa do Novo Colorado, onde recebia cuidados de moradores solidários.
“Ele levou um tiro na barriga, ficou muito mal. Conseguiram trazer ele para uma casa aqui do bairro, ficou escondido. Vinha médico e enfermeiro para cuidar dele. Foi ajudado pelas pessoas que gostavam dele”, lembra um dos moradores. Mas a PM acabou descobrindo o paradeiro de Sapinho, lembram as testemunhas da época.
Oficialmente, os registros dão conta de que Sapinho teria reagido à abordagem policial. A versão, no entanto, sempre foi refutada pelos moradores do Novo Colorado. “Do jeito que ele estava, não tinha condição, estava muito ferido. Entraram e mataram ele. Acho que não teria mais jeito para ele também, ficou muito ruim, falaram que só ficava deitado”.
Em 1º de agosto de 2018, data em que Sapinho morreu, os moradores do Novo Colorado se revoltaram contra os policiais militares que participaram da ocorrência. Eles foram apedrejados e viaturas, além de uma ambulância, também foram danificadas durante as manifestações dos populares.
Um dos vídeos da época mostra parte da confusão. “Estamos com raiva, estamos com raiva”, grita uma voz masculina. Antes, outro homem anuncia: “Polícia está atirando”. Uma mulher alerta depois de barulhos que parecem ser de tiro: “Guri, não revida, você está doido?”.
Quase uma década depois, a memória de Sapinho ainda ecoa no Novo Colorado. Para além dos crimes, ele segue lembrado como quem protegia e ajudava a comunidade. "Muitas pessoas aqui ficaram tristes quando ele morreu", lamenta uma mulher.