Quando tinha oito anos, Altiery Dallys, hoje com 38, desejou profundamente ser o palhaço que aparecia em uma das cenas de uma peça criada na igreja que frequentava com a família. Na memória, ele ainda se lembra exatamente de como a vontade crescia ao ver como a palhaçaria divertia quem estava assistindo o espetáculo. Talvez pela pouca idade, Altiery não conseguiu realizar o sonho de criança naquela época, mas na vida adulta, ele mergulhou no processo de busca "pelo palhaço interior".
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Depois de muito estudo sobre a arte milenar nasceu "Tetéko", que resgatou o desejo do pequeno Altiery que admirava o palhaço em cena na peça da igreja durante a infância. Do nascimento de Tetéko também surgiu o projeto "Periferiando Por Aí", que leva a palhaçaria e o teatro de forma gratuita para às margens de Cuiabá, onde a população periférica não consegue acessar a cultura, muitas vezes disponibilizada nas regiões centrais.
"A primeira vez que fui palhaço, sinceramente, foi um misto: alegria por realizar algo que queria enquanto criança, mas por não ter técnica, foi meio vergonhoso até mesmo pelo figurino, era um palhaço de maquiagem bem carregada. Mas teve o prazer de poder brincar, de ver pessoas sorrindo, de entregar algo para alguém, é como se eu tivesse entregado um presente para alguém e esse alguém se deliciasse com o presente, que é o brincar".
Palhaço Tetéko se apresenta gratuitamente nas periferias de Cuiabá. (Foto: Arquivo pessoal)
A chegada do primeiro filho também foi parte importante no caminho que levou Altiery a Tetéko, além de ter sido a principal motivação para que ele se tornasse servidor público, pensando na segurança financeira, algo que muitas vezes é uma incerteza na vida de artistas brasileiros.
"Sou servidor público em uma escola, mas prefiro sempre falar que sou artista, me tornei servidor público quando descobri que seria pai, por medo de que meu filho passasse por dificuldades. Viver de arte em Mato Grosso é bem complicado, não é algo fácil, até tiro o chapéu para alguns colegas que têm conseguido, que têm labutado muito para poder sobreviver mesmo".
Altiery ressalta ações emergencias como editais lançados durante a pandemia da covid-19, que disponibilizaram verba para artistas mato-grossenses. "De lá para cá tiveram outros projetos, como a Lei Paulo Gustavo, conseguindo que os artistas pudessem mostrar seus trabalhos nas praças, teatros e outros lugares, mas não é uma política pública implantada e isso faz com que a população não veja a arte como algo importante e essencial para a sociedade como um todo".
Para continuar executando as apresentações do projeto Periferiando Por Aí, o palhaço conta com doações que recebe de apoioadores por Pix. Apesar das dificuldades para conseguir manter a palhaçaria pulsando nas periferias, Altiery sonha em ir levar Tetéko para bairros cada vez mais distantes do centro.
"Já cheguei a conclusão que preciso ir para mais longe do Centro ainda, não que eu não vá me apresentar no Centro, eu me apresento onde tiver que apresentar, mas precisamos chegar nos bairros mais afastados, porque essas pessoas dificilmente saírão para consumir teatro em outros lugares, por uma série de fatores".
O servidor público e o palhaço Tetéko
Os limites entre a vida de Altiery enquanto pessoa, pai e servidor público, e o palhaço Tetéko não são divididos por linhas sólidas, fazendo com que as existências se misturem. O processo é diferente da construção de um personagem interpretado por um ator, explica Altiery, já que ele e Tetéko não estão separados. Na escolha em que trabalha, os colegas, alunos e pais das crianças sabem do palhaço que existe dentro do servidor público.
"Só que, eu sendo o palhaço, terão momentos em que vou estar super alegre, mas também vou estar triste ou estressado, assim com o qualquer pessoa, porque o palhaço não é uma personagem que eu criei, ele não fica separado de mim. Não existe o palhaço e o Altiery. O palhaço sou eu. Eu acordo palhaço, vivo palhaço e durmo palhaço".
"É claro que a gente aprende, tem momentos que preciso ser sério, como em uma reunião de trabalho, mas na maioria das vezes acabo brincando, andando na rua, vejo uma criança e brinco com ela, porque fala mais alto o brincar, o se divertir e ver a alegria da pessoa. Mas consigo separar, fazer com que o palhaço seja mais sério, a gente aprende a dividir as coisas, mas não a dividir eu e o palhaço, não tem como", continua.
Apesar de ter encontrado espaço na palhaçaria para seu lado cômico e extrovertido desaguar, o palhaço de hoje foi uma criança extremamente tímida que chegou a quase reprovar na escola por medo de ser o centro das atenções ao responder a chamada, lembra Altiery.
"Depois que comecei a me encontrar com o palhaço e a me descobrir, devo muito ao teatro, e isso foi mudando. Não daria essa entrevista, por exemplo, de forma alguma, porque tinha muita vergonha. Agora eu falo até demais, em todo e qualquer lugar que eu chegar, vou conseguir conversar e me abrir".
Altiery tinha dois sonhos: ser palhaço e ser pai. Com o espetáculo "De pai para filho" ele também levou o filho para o mundo da palhaçaria. (Foto: Arquivo pessoal)
Os sonhos das periferias
Nas apresentações que faz nas periferias de Cuiabá, Tetéko busca falar sobre sonhos entre uma palhaçada e outra, conta Altiery. Para ele, é importante plantar sementes no coração das crianças que estão crescendo às margens, assim como ele foi impactado pelo desejo de se tornar palhaço quando era criança e teve o primeiro contato com a arte circense.
"Falo para eles que eles têm que sonhar. Fico muito feliz quando posso contribuir com a sociedade, quando posso chegar em um bairro periférico e ver o sorriso dessas crianças, poder deixar essa sementinha de alegria e sonho no coração delas. Particularmente, minha apresentação as vezes pode ter sido ruim, mas se eu conseguir plantar essa semente, já me traz alegria e prazer".
"Quero ser palhaço quando crescer", é uma das frases que Altiery escuta as crianças que antes assistiam Tetéko atentas. "Sempre falo: 'então estuda'. É o estudo que nós faz chegar até onde a gente quer, o estudo é a base de tudo. 'Ah, mas o palhaço não precisa estudar, é só colocar o nariz vermelho', não é, o palhaço precisa também de estudo, precisa conhecer para poder se encontrar".
Dos sonhos que tem listados para realizar ao longo da vida, Altiery já conseguiu dois: ser palhaço e ser pai. Mas ele continua buscando recursos para tirar do papel o terceiro, que é construir uma escola de circo no bairro Nova Esperança 3, na região do Pedra 90, onde ele mora. A ideia é oferecer aulas gratuitas para as crianças da periferia.
"Para poder ajudar as crianças de lá, porque o teatro é isso, ele faz com que a criança não vá para o mundo do crime, por exemplo. Tenho projeto de ter uma escola gratuita para essas crianças poderem fazer aulas de circo, teatro, dança e música. É um projeto que está no meu coração, mas que se tudo der certo, logo vem à tona para que todos possam aproveitar".