Há dois anos, a cuiabana Jaqueline Costa de Almeida, de 38 anos, viu a vida que tinha construído ao lado do ex-marido e dos três filhos desmoronar quando descobriu traições dele com outros homens. Apesar dos olhos tristes e das cicatrizes pelo corpo, a gestante sustenta um sorriso quando conta a própria história sentada em frente ao lugar que aprendeu a chamar de casa: a calçada da rua São Joaquim, perto do Sesc Arsenal, em Cuiabá.
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Sem contato com os filhos que moram em outra cidade e com quem ela costuma ter algum tipo de contato apenas uma vez por mês, quando consegue. Mas ela encontra certo consolo ao dividir que, nas ruas, se tornou uma espécie de “mãezona” e garante: “todo mundo me conhece como mãe. Se você perguntar se conhece a ‘gordinha mãe’, todo mundo conhece, no ‘Calipto’, no Beco, no Morro da Luz, no Centro Pop”.
“Eles me chamam de ‘mãezona’ e são muitos, porque ‘já vim vindo’ desde lá do Beco do Candeeiro para cá, muitos que me encontram na rua me chamam de mãe, porque cuido de todo mundo”, continua.
No casamento de pouco mais de uma década com o ex-marido, Jaqueline foi espancada, se viu com a saúde mental em frangalhos e, pela segunda vez na vida, a pasta base se apresentou como uma fuga. O primeiro encontro dela com a droga foi aos 12 anos, quando ela fugiu de casa e foi parar nas ruas.
“Problemas pessoais que sofro desde a infância”, é como ele justifica a necessidade de fugir da realidade a cada tragada que já deu nos cachimbos carregados com pedras de pasta base. Aos 15 anos, ela foi estuprada e engravidou. Quando conheceu o ex-marido, ele se apresentou como uma ajuda que chegava em boa hora para uma adolescente assustada que gestava o primeiro filho.
“Hoje é pai dos meus outros dois filhos, só que depois de 11 anos de casada, descobri que ele era homossexual. Ele me traía e se eu falasse alguma coisa, apanhava. Foi quando tive problema de saúde, depressão, ansiedade, síndrome do pânico e parei de trabalhar, voltei às drogas de novo. Nessa época ainda era vendedora de loja, estava com a vida tranquila, normal, sem droga, só que desde então não consegui mais segurar a onda, foi muita coisa”.
Ela e o ex-marido moravam em uma casa no bairro Morada do Ouro, em Cuiabá. “Avaliada em R$ 280 mil, eu tinha uma vida boa”, lembra Jaqueline. As tentativas de suicídio também se tornaram constantes quando descobriu as traições do ex-marido.
“Abandonei tudo, perdi tudo, filhos, casa, família, perdi tudo. Tenho contato com meus filhos uma vez no mês, só que ninguém mora mais aqui, sou sozinha aqui. Essas pessoas aqui são minha família, são eles que cuidam de mim se estou com fome, se estou doente”, conta enquanto aponta para o grupo do outro lado da rua.
Jaqueline e o marido moram na calçada com um grupo de pessoas em situação de rua. (Foto: Bruna Barbosa/Olhar Direto)
Enquanto ela revira as memórias, a “família de calçada”, incluindo o marido, um homem negro, magro e de moicano no cabelo, estão unidos em uma conversa descontraída. No fogareiro improvisado com tijolos e a grade de uma geladeira, pedaços de madeira pegam fogo para cozinhar uma panela com ossinhos doados por um açougue que ajuda o grupo.
“Não tenho preguiça de fazer comida, hoje vai ter ossinho e arroz, mais nada, mas sempre tem para todo mundo. Aquele dali de short azul não mora aqui, ele mora na pastora, aquele de blusa verde tem a casa dele, aquele de branco mora no albergue, mas todo mundo vem almoçar aqui, aí cada um faz sua parte. Um foi lá e lavou a louça, outro foi buscar lenha, aí o outro vai lá no açougue buscar o ossinho”.
O marido de Jaqueline é um dos mais animados, enquanto gesticula e dá risada com os amigos. Ela aponta para um caixa de som na calçada do outro lado do grupo e lembra que o objeto foi uma das doações que eles receberam recentemente. Em seguida, ela desfaz o sorriso para voltar a falar sobre a preocupação com a nova gestação.
Foi depois de uma briga de rua que Jaqueline descobriu que estava grávida pela quinta vez na vida. Na quarta gestação, ela sofreu um aborto espontâneo e perdeu o bebê. Agora, ela tenta seguir as orientações que ouviu no hospital: ‘me falaram para eu me cuidar, senão vou acabar perdendo’.
Há alguns dias, ela precisou passar a maior parte do tempo de repouso após um sangramento. Jaqueline e o marido estão apreensivos com a chegada de um novo membro à família de calçada. Antes de ficar sem ter onde morar, João Paulo era pintor profissional e chegou a trabalhar em uma obra no Pantanal Shopping, Jaqueline conta com orgulho.
“Meu marido eu conheci na pastora Fátima, lá fui batizada, fui obreira, tudinho, só que engravidei dele e perdi, caí na rua de novo. Ele tem mais tempo de rua que eu, tem cinco anos, ele é pintor profissional, tanto que o Pantanal Shopping essa última pintura de agora, foi ele que pintou. Tem problema com droga e álcool. É uma fuga para esquecer os problemas, a vida é difícil demais”.
Do Beco à Rua São Joaquim
A única coisa que Jaqueline tem atualmente é uma muda de roupa, enquanto mostra os pés, conta que nos últimos dias estava andando de descalça, mas há algumas semanas ganhou um chinelo. Antes de chegar à calçada da rua São Joaquim, ela passou por outros pontos de concentração de pessoas em situação de rua do Centro de Cuiabá.
Ossinho doado por açougue da região costuma ser a proteína dos almoços e jantares do grupo. (Foto: Bruna Barbosa/Olhar Direto)
Em nenhum deles ela encontrou o companheirismo que tem com o grupo que chama de família. Jaqueline chegou a ser uma das moradoras do Beco do Candeeiro e de uma ocupação perto da Rodoviária de Cuiabá que ela conta se chamar “Calipto”.
“Esses dias fui lá no Beco com meu marido, já trouxe aquela menina para cá", conta enquanto estende uma das mãos para apontar a única mulher do grupo no outro lado da calçada.
"Aqui é melhor que o Beco, lá é pesado, lá você é humilhada. Aqui todo mundo cuida, zela um do outro, todo mundo é dependente químico, todo mundo é cachaceiro, mas aqui a gente respeita um ao outro, aqui é uma família. Família de cansado, porque quando você passa aqui a noite, vai ver uns nove dormindo aqui, ainda tem uns abençoados que param aqui”, diz mantendo o bom-humor.
Jaqueline ressalta os episódios de assédio que mulheres em situação de rua sofrem. ‘Tem homem que acha que por você ser dependente, você tem que ficar com ele por R$ 10, muitas sofrem abuso, agressões. É difícil ser uma mulher em situação de rua. E outra para gente sair da rua, não tem albergue só para mulher, até casa de recuperação é difícil ter só para mulher. É para homem ou casal”.
Assim como o marido, ela também tinha uma vida profissional antes de se ver em situação de rua. Além de vendedora, Jaqueline lembra das vezes que trabalhou como montadora de palco, quando esteve na equipe de shows como do MC Poze do Rodo, da dupla Henrique e Juliano e da cantora Simone Mendes.
No entanto, Jaqueline diz não ter psicológico suficiente para retomar a vida fora das ruas sozinha. Ela se envergonha de pensar em entrar em uma loja para voltar a trabalhar com vendas, por exemplo. “Muita gente já me viu na rua, muita gente já me viu bêbada com um cobertor verde debaixo do braço. É difícil até para recomeçar. A gente não tem nada, eu tenho duas mudas de roupa, porque infelizmente o morador de rua rouba outro morador de rua, meu marido só tem aquele short e uma camiseta”.
“Eu queria parar de usar”, lamenta a gestante.