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Terça-feira, 15 de outubro de 2024

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PRIMEIRA NEGRA NO CARGO

Família de matriarcas e Cuiabá como 'musa': conheça poeta presidenta da Academia Mato-grossense de Letras

Foto: Reprodução

Família de matriarcas e Cuiabá como 'musa': conheça poeta presidenta da Academia Mato-grossense de Letras
O hábito de ler herdado da mãe, que descreve como uma mulher forte que voltou a estudar nos anos 50 e tinha a leitura de clássicos como hábito, a força de ser resultado de uma família de matriarcas e uma criança criada no “mato do Pantanal”, são algumas das memórias que compõem a trajetória da escritora e presidenta da Associação Mato-grossense de Letras (AML), Luciene Carvalho. 


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A posse aconteceu em 16 de setembro, quando Luciene se tornou, também, a primeira mulher negra a ocupar o cargo em 102 anos de AML. Na parede de retratos dos antigos presidentes, a escritora é apenas a quarta mulher. Apesar do aspecto de representatividade de gênero e raça, Luciene ressalta a importância de cumprir com o papel de gestora para qual foi eleita por unanimidade. 

“É gênero e é raça em um Brasil avesso à isso. Representatividade só faz sentido se você a cumpre com competências, saberes e fazeres. Enriquecendo e honrando o fato. E é nesse caminho que sigo com nossa representatividade. Representatividade por representatividade, a gente já viu que não vira. Acho que precisamos, sim, de pessoas serem inseridas, pessoas que não tinham espaço, mas elas têm trazido suas competências, suas habilidades e seus encantamentos”. 

Luciene ainda lembra a noite de posse como um momento de “êxtase”, quando a escritora viu a Casa lotada por mais de 300 pessoas que assistiram a ex-presidente Sueli Batista passar o comando para a poeta que vive dos livros há 22 anos e se prepara para lançar a 15ª obra. Ela ressalta que, mesmo sem um “convite impresso”, pessoas de todos os “naipes e etnias” se sentiram autorizadas a acessar o espaço. 

Luciene foi empossada como imortal da AML, em 2015, quando se tornou a primeira mulher negra a ocupar uma das cadeiras da Casa. (Foto: Reprodução)

“Elas vieram e nada foi mais importante que recebê-las, parece que elas se sentiram autorizadas para entrar. Então, tenho respeito e gratidão. Honra pelas meninas pretas do lugar de onde eu vim, pelo bairro do Porto, pelas minhas tias, pelo meu pai que foi tão cedo. Um monte de sentimento bom, um monte de sentimento bonito, sabe? [sobre a posse]. Ainda estou em estado de êxtase, está assentando”. 

A escritora também se define como uma mulher que descende de uma família de matriarcas que a ensinaram a atuar e agir no tempo para conquistar dignidade e território social. “ Minha avó era uma grande matriarca, posturada, atenta e respeitada. A linhagem me ajuda a entender que você precisa operar e cumprir seus papéis”, pondera. 

Para Luciene, mais do que uma “salvação”, a poesia foi responsável por lhe apresentar um “lugar social”. Ela brinca que, atualmente, também está “namorando” com o teatro desde que se formou em no curso de Direção da MT Escola de Teatro, que funciona no Cine Teatro Cuiabá. 

“No meu caso foi totalmente a minha salvação. Não tenho vocações paralelas, tive formação em direção teatral e hoje tenho a honra de trabalhar com isso também mas, naturalmente, a palavra e a poesia. Naturalmente fui construindo uma relação com meu leitor. É absurdo, quando vou fazer um livro, dentro dele está engendrado um diálogo cotidiano com o meu leitor, ele existe dentro de mim, é uma troca. Só encontrei sanidade na minha vida quando me define pela poesia, sou apaixonada, confesso” 

Família de matriarcas  

A bisavó de Luciene, Garciana, era a única “parteira de carta”, como eram chamadas as profissionais que tinham autorização oficial para realizar os partos, de Nossa Senhora do Livramento (MT). Dela nasceu Josefa, a avó da escritora, que se casou com “Seu Mané Grande”, que se mudou para Cuiabá com o marido músico e servidor público para estruturarem uma família. 

A relação, por sua vez, gerou Conceição, mãe de Luciene. Conceição se casou com um baiano que veio do sertão da Bahia para Mato Grosso “trazendo a estrada de ferro”, como conta a escritora. Os avós paternos de Luciene tiveram 22 anos filhos no sertão baiano. Conceção é o nome que está tatuado em um dos braços da poeta. 


Em Dona, lançado em 2018, Luciene escreveu poemas sobre as mulheres de 50, suas dores, ansiedades e medos. (Foto: Olhar Direto)

“Meu pai veio trazendo a estrada de ferro para o Mato Grosso via São Paulo, era um Mato Grosso uno. Eu nasci em Mato Grosso antes da separação. Minha mãe fez concurso em um instituto chamado Iapetec, que existia naquela época, andou, conheceu São Paulo, morou em Campo Grande”, conta. 

“Em um determinado momento encerrou esse ciclo e foi para Corumbá, onde já moravam três irmãs dela. Lá, ela conheceu meu pai recém viúvo, existe um encantamento e nasce apenas uma cria desse encontro, que sou eu. Sou filha única de mãe, mas meu pai tinha outros filhos”, continua. 

Ao mesmo tempo em que cresceu como uma “filha do Pantanal”, também carregava a ancestralidade de uma mulher que, aos 21 anos, saiu de casa para trabalhar e “conhecer o mundo”, além de ser apaixonada por cantar em rádio em Campo Grande (MS). 

“Ela voltou a estudar e chegou até o segundo grau nos anos 50, raspas de latim, raspas de francês… Minha mãe era culta, adorava ler. Engraçado, como nós morávamos em um distante lugar, depois de Corumbá, não tínhamos luz elétrica, até que eu fizesse seis anos não conhecia luz elétrica em casa, mas todo mundo lia. Não a grande literatura, a letrada era mamãe, mas meu pai lia Tex, minha irmã lia fotonovela, meu irmão lia… Leitura era um hábito, é aí que eu sou salva”. 

O hábito da leitura e a literatura brasileira feita em Mato Grosso 

Das reflexões que permeiam a atuação de Luciene enquanto escritora, a constituição de um hábito de leitura na infância é uma das problemáticas que se fazem presentes em seu discurso. Ela ressalta que a atribuição da leitura à escola deveria ser um desdobramento, sem que os professores sejam responsáveis por “forjar tão bem hábitos”. 

“Quando uma criança não vê os pais lendo, esse hábito não é formado em família, é hábito, é nutrição de alma. Então, fico pensando, as escolas vão ter que suprir. Hoje em dia, na verdade, as escolas estão suprindo muito, todas as lacunas. Nem sei se as escolas hoje é mais construção de conhecimento, de saber, ou virou um grande anteparo da formação humana, das carências. É imenso o papel da escola na sociedade hoje”. 

A presidenta da AML também afirma se preocupar com a ausência de aquisição e distribuição de livros da literatura mato-grossense para que eles sejam trabalhados em sala de aula. Para ela, esse tipo de leitura tem um papel importante na construção de pertencimento e na busca por identificação. 

“Se você tivesse, na sua escola, lido um conto que se passa na Rua Joaquim Murtinho ou na Avenida Getúlio Vargas, que onda louca que estaria na sua cabeça. Que encanto seria. Conversar sobre a urgência da Educação de Mato Grosso entender que tem um aspecto terapêutico, de auto estima, a criança ler sobre seu próprio lugar, sobre um lugar histórico, um lugar ancestral… Isso gera uma estima interna imensa”. 

A escritora aponta o marketing como saída, já que se define como uma “marketeira de si mesmo” e uma “caixeira viajante” da literatura mato-grossense. Luciene dá como exemplo a propaganda em torno da cultura norte-americana, por exemplo. 


Presidência da AML se alternou entre mulheres, sendo Luciene a quarta presidenta e a primeira mulher negra da Casa. (Foto: Reprodução) 

“Eu me lembro de ler quadrinhos e ver como a cultura norte-americana se vendeu tão bem, tanto que um monte de gente foi para Disney. A gente precisa entender como se constrói valor, a indústria do amor a si mesmo se dá através de papel, de audiovisual… Acho que o audiovisual daqui a pouco vem firme, mas sou da literatura, então vou ter que dizer: cuidado com o bonde”. 

Cursar Direção na MT Escola de Teatro, por exemplo, surgiu como alternativa para que Luciene pensasse a literatura mato-grossense a partir do teatro. “Quando terminamos de lançar livros em uma cidade, parece que deixar o livro é tão pouco”, diz. A escritora ressalta a urgência de políticas públicas que garantam a sustentabilidade  e declara que é momento de nacionalizar a literatura feita em Mato Grosso. 

“Falta política que enxergue, apoie e fomente. E não só fomentar a iniciação, mas que tenhamos caminhos de sustentabilidade para o que já tem cerne, para poder caminhar para o nacional. Está na hora da nacionalização efetiva e grupal da literatura mato-grossense. Na verdade, Mário César me ensinou, é literatura brasileira feita em Mato Grosso. É um fato, é feita em língua portuguesa, na língua brasileira, então é literatura brasileira feita em Mato Grosso”. 

Passagem pela AML 

Lúcida de que o cargo que exerce é transitório, Luciene entende que ter sido eleita ultrapassada questões egóicas e conta que pretende trabalhar para colaborar na construção de um mercado literário de Mato Grosso ,além de cuidar de um patrimônio, já que a AML funciona na Casa Barão, um casarão bicentenário no Centro Histórico de Cuiabá. 

Coloco Mato Grosso na minha escrita o tempo todo, Cuiabá é minha musa, minha poesia é cuiabana. Sou corumbaense, mas minha escrita é cuiabana. Essa cidade é muito massa, ela é muito chique, como cabe, como efervesce? Olha, ouça quem tem ouvido de ouvir, veja quem tem olhos de ver, no mais, é insatisfação, qualquer ar condicionado resolve o problema de Cuiabá. 

“Vou ficar um tempo cuidando do que é nosso, não está em um lugar de ego, mas de entender que essa casa, enquanto Casa Barão, é um monumento à durabilidade em um momento em que a cultura é tão transitória, as relações são líquidas. Você chega em uma casa bicentenária, a sua alma fica diferente, é a herança do que venho e para o que vai. É nesse momento que me coloco a serviço”. 

A poeta ainda destaca a importância da mídia e da imprensa para divulgação das obras produzidas em Mato Grosso. Luciene aposta nas ferramentas midiáticas e no diálogo com a internet para propagar os nomes mato-grossenses. 

“Eu sou o produto que vocês criaram [a imprensa], acredite em mim. Me lembro do lançamento do meu livro, em 2001, e do quanto foi importante ter cobertura do Diário de Cuiabá, a Folha do Estado e A Gazeta. Os três deram a notícia e, desde lá, a imprensa cuiabana vem sinalizando em minha direção e isso me possibilitou estar aqui hoje. Tenho a impressão que, talvez, possa emprestar esse know how de vínculo”. 

“Vai ter que ser com ajuda, de forma que a pessoa entenda o valor de um livro, que a gente pensa que é caro, mas que é mais barato que a blusinha. Outro dia falei isso, não quis constranger ninguém, uma blusinha custa R$ 50, um livro custa R$ 28. Essa blusa vai passar e esse livro vai para a estante. Se o produto fosse ruim, eu teria constrangimento, mas o produto é bom, façamos”. 

Luciene celebra uma “geração inteira de talentos vivos” na literatura mato-grossense. “Se você me pedir para citar dez nomes da literatura mato-grossense, eu acho que dá mais”, se desafia. Na lista ela cita nomes como Marta Cocco, Marli Walker, Sueli Batista, Divanize Carbonieri, Edson Flávio, Agnaldo Rodrigues, Cristina Campos, Olga Castrillon e Caio Ribeiro. 

Depois de citar quase duas dúzias de nomes, a presidenta da AML brinca: “Não te disse, que hoje posso te falar de um naipe de talentos? Devo ter ultrapassado 15 nomes e não estou contemplando todos. Nós temos em Mato Grosso uma geração viva produzindo. O que precisamos é respeitar é transformar um bom produto em mercado, porque vale a pena, porque é trabalho”. 

Luciene também reforça que a literatura não pode ser classista e precisa abarcar mulheres e homens pretos, de todas as classes sociais, com ou sem formação acadêmica. 

“A literatura é a companhia do humano e isso há séculos. Depois que o homem descobriu pegar um livro e poder seguir com ele, com o tema que eu escolhi, isso é de um requinte. O livro trouxe uma evolução para a alma humana e é preciso que junto com os grãos plantemos livros mato-grossenses”.
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