Sejam pelos repentes feitos de “bate-pronto” pelo pai que é de família paraibana ou pela coleção de discos da mãe, a música sempre se fez presente nas vidas das cantoras mato-grossenses Karola Nunes, de 37 anos, e Pacha Ana, de 28. As duas nasceram e cresceram em Rondonópolis, mas quase dez anos de diferença fizeram com que os laços entre elas se estreitassem apenas em Cuiabá, onde já dividiram palcos e composições.
Karola e Pacha Ana fazem parte do line-up do Festival Baguncinha, que vai acontecer em 19 de agosto, na Arena Pantanal, em Cuiabá. São mais de dez horas de música com nomes nacionais como Duda Beat, Rael e Vhoor, além de mais de 30 artistas regionais. Em 30 de junho, Karola lançou o novo single "Batida Tropical", com Patricktor4, que faz parte das músicas que serão tocadas no festival cuiabano.
Bem-humorada, Karola “tira onda” ao contar sobre quando Pacha Ana lembrou sobre o desejo dos anos passarem logo para que ela pudesse sair para ouvir a amiga cantar nos bares de Rondonópolis, assim como a irmã fazia. Agora a diferença entre elas pode parecer superficial, mas quando Karola tinha 16 anos e se aventurava nas primeiras experiências musicais, Pacha Ana ainda vivia a infância.
Ao contrário de Karola, que sempre sonhou em começar a tocar nos barzinhos de Rondonópolis, Pacha Ana teve uma jornada mais introspectiva na música. Ela lembra que por muitos anos, nem os pais ou a irmã, que foi quem lhe influenciou com o rap e hip hop, a ouviram cantar.
“Minha trajetória na música em Rondonópolis foi muito pessoal, porque ainda era muito jovem. Fui me abrir para a música e começar a cantar profissionalmente em Cuiabá, foi quando perdi essa vergonha. Nem meus familiares me ouviam cantar ou tocar, porque eu era realmente muito tímida. A Karola já fazia apresentações em Rondonópolis, mas eu era muito nova lá”, conta Pacha Ana.
Com 18 anos ela se mudou para Cuiabá, onde Karola já fazia parte da cena musical regional. Não demorou para que as duas mulheres, mesmo de gerações diferentes, mas que sonham e lutam para viver da arte, se encontrassem. A admiração “pelos corres” uma da outra floresceu.
“Sem dúvida a Karola é uma referência para mim, até por ser uma pessoa que está na música antes de mim, sempre olhei com olhar artístico mesmo, de fã. Sou muito fã dela. É muito importante ter ela como referência para mim, porque me deu um impacto muito grande, alavancou a minha carreira mesmo”, diz Pacha Ana.
Depois que se conheceram, as parcerias musicais aconteceram naturalmente. No EP Somos Som, de Karola, uma das músicas que virou clipe premiado em festivais brasileiros e fez sucesso, foi composta por Pacha Ana. A letra de “Chorar” fala sobre a importância de permitir que as lágrimas caiam.
“Uma vez eu vi ela cantando, gostei e pedi para ela, que liberou para gravarmos. Desde que ela chegou em Cuiabá e a gente se conheceu, temos cruzado bastante nos nossos trabalhos. Também temos um projeto chamado ‘Das Matas, que sou eu, a Pacha Ana e a Negra Lú, três minas de Rondonópolis. É um show que fazemos cantando as nossas músicas, nós três no palco, juntas e cantando”.
Estreitando laços entre mulheres
Quando se conheceram em Cuiabá, Karola também convidou Pacha Ana para entrar na banda de reggae que ela tinha na época, a “Negramina”. Para Karola manter os laços estreitos com outras mulheres que estão no meio artístico é imprescindível. A cantora se lembra de inúmeras situações em que sofreu na pele o machismo, seja por episódios de assédio por parte de homens que trabalhavam com ela ou por ter a experiência de quase 20 anos de estrada descredibilizada.
“Ainda é um meio extremamente machista. Fui forjada nesse meio, porque se você vai montar uma banda, dificilmente você vai encontrar mulheres instrumentistas, então você tem que tocar com um cara. Nisso você está exposta a toda situação machista que pode acontecer”.
Assim como as parcerias com Pacha Ana, Karola ressalta que uma de suas metas é reforçar a presença das mulheres no palco. Além da carreira solo e do projeto recente com a Banda Calorosa, ela também faz parte do Sasminina, grupo de samba raiz composto apenas por mulheres.
“Até hoje com 20 anos de carreira, volta e meia encontro um boy que quer me ensinar como pluga o cabo na guitarra. Pode parecer bobeira, mas é cansativo. Às vezes temos que convidar homens [no Sasminina], mas são parceiros que a gente sabe que pode confiar no sentido de que ele entende que está ali cobrindo uma mulher, em um grupo de mulheres e que certas posturas não cabem”.
Também são mulheres as principais referências familiares na música para Pacha Ana e Karola, que tinham como influência as irmãs. O fato da irmã de Pacha Ana gostar de ouvir Racionais MCs foi o que lhe abriu os olhos para o gênero musical em que ela seguiu profissionalmente como cantora.
“O rap e o hip hop foi por causa da minha irmã mais velha, que ouvia muito Racionais, foi a partir dela que tive esse primeiro contato. Mas a parte da música foi da família mesmo, minha mãe ouvia muita MPB e tinha uma coleção imensa de discos. Comecei a cantar bem jovem, cantarolava desde cedo, mas profissionalmente foi em 2016”, conta.
Para Karola, a irmã foi quem “abriu o caminho no peito” para que ela seguisse na música. Quando tinha seis anos, ela viu a irmã ganhar um violão de presente da avó e não demorou para se interessar pelo instrumento. Mais tarde, quando voltou para Mato Grosso depois de uma temporada de pouco mais de um ano em Florianópolis (SC), também recebeu o incentivo da irmã para cursar Música na UFMT.
“Aprendi violão por causa dela, toquei nos recitais em Rondonópolis por causa dela e vim fazer faculdade de Música porque ela me ajudou. Quando cheguei em Cuiabá ela era uma das percussionistas de um grupo de samba e choro, o Bionne, e ela já falou: ‘minha irmã está na área’, entrei no Bionne por causa dela”.
O pai já falecido, que trabalhava como representante comercial mas sonhava em aprender a tocar violão, e a mãe que se achava sortuda por ter uma filha musicista também foram imprescindíveis para a carreira de Karola. Ainda na adolescência, era sob o olhar do pai que se apresentava nos bares de Rondonópolis.
“Ele era extremamente orgulhoso, era uma realização dele. Quando ia tocar no barzinho, ele ficava junto ou no carro quando estava muito cansado. E minha mãe, lembro que fui tirar uma onda de 1º de abril, falei que tinha desistido da faculdade. Cara, ela ficou desesperada no telefone, como se eu tivesse largado Medicina”.
Esquece o ‘Arquivo Confidencial’ no Faustão
Karola brinca que quando começou a cantar os amigos disseram que logo estariam no Arquivo Confidencial dela, no Faustão. No entanto, a mato-grossense explica que sabe que não faz um som ‘mainstream’ (música mais ouvida ou comercializada). Assim como sonhava em tocar nos barzinhos de Rondonópolis na adolescência apenas por “achar muito bonito”, Karola resiste na cena alternativa e regional, movida pela vontade de estar no palco.
Clipe de "Chorar", música escrita por Pacha Ana, foi premiado em festivais nacionais. (Foto: Reprodução)
“Não faz sentido eu mirar no mainstream porque não produzo esse tipo de música, sabe? Mas o midstream me atrai, que é esse mercado que acho que está bombando agora. O mercado de festival é um rolê que eu gosto. Tenho muita vontade de conseguir chegar em um momento profissional assim de conseguir tocar não só aqui, mas em outros lugares”.
Com a Calorosa, Karola e os parceiros de banda Yan Alvez, Paulinho Nascimento, Bruno "el Joe " e Vinícius Barros, buscaram se inspirar nas raízes através do lambadão. Foram meses estudando para materializar o novo projeto que toca em um lugar familiar no coração dos cuiabanos.
“O regionalismo tem altos e baixos, acho que agora está em alta, a galera está prestando atenção. Também pode ser por conta da faixa etária, acho que quando somos jovens temos muitos preconceitos. Fizemos um documentário sobre o processo de criação e gravação da Calorosa e falo sobre isso de ver beleza no que é local”.
Tanto ela, quanto Pacha Ana concordam sobre a importância de iniciativas como o Festival Baguncinha para que os artistas regionais tenham vez e voz. Karola ressalta que a presença de atrações nacionais como Duda Beat, Rael e DJ Vhoor fazem com que mais mato-grossenses conheçam os nomes daqui.
“Aqui em Mato Grosso ainda vivemos muito de consumir o que é de fora, não tem essa cultura de consumir a música autoral por aqui. Colocar Mato Grosso novamente na rota dos festivais é poder dar vez para o artista local, para que ele mostre seu trabalho, para que ele chegue a um patamar nacional e seja reconhecido”, explica Pacha Ana.
Para ela, festivais como esse e outros que ainda vão acontecer, como o “Vambora”, representam a oportunidade de dar um palco para os artistas regionais. Apaixonadas pela terra em que vivem, Karola e Pacha Ana não pensam em deixar Cuiabá. Sonham com uma agenda de shows nacionais, mas esperam poder voltar para casa.
“Quero alcançar muitos lugares ainda, quero chegar em vários espaços que ainda não cheguei. Acho que o mundo é muito grande e nossa voz ainda não chegou em todos os lugares. Já pensei muitas vezes em sair de Cuiabá, só que acho que criar uma carreira sólida no lugar de onde somos também é muito importante. É raiz isso”, conta Pacha Ana.
“Depois, que eu possa ir para fora, sem esquecer de onde sou e talvez sem me mudar, mas podendo levar minha música para outros lugares, Rio, São Paulo ou fora do Brasil quem sabe, mas podendo estar perto dos meus, da minha casa, da minha família e da minha terrinha”, continua.
Karola também já foi interpelada dezenas de vezes sobre uma mudança para São Paulo (SP), apesar de gostar da capital paulista, ela não pensa em deixar Mato Grosso. Caso um dia a carreira alavanque em níveis nacionais, tem como meta continuar morando em Cuiabá.
“Acho que passamos muito por isso aqui, o artista começa a ter visibilidade e vaza. E aí a cena daqui morre. Acho importante estarmos aqui para trazer visibilidade para cá. Sempre penso assim, se algum dia for esse rolê: ‘Ah, bombei, estourei, fiquei famosona, sou a nova Anita. Eu quero ser tipo a Pabllo Vittar, que mora em Uberlândia, sabe? Eu não vou sair daqui”, brinca.
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