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Quarta-feira, 13 de novembro de 2024

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Ir de Kombi a Canudos é transbordar as páginas de Os Sertões na cidade duas vezes riscada do mapa

Foto: Pelos Brasis

Ir de Kombi a Canudos é transbordar as páginas de Os Sertões na cidade duas vezes riscada do mapa
Olá viajantes. Nas nossas andanças de Kombi pelo Nordeste, já transitamos pela musicalidade de Luiz Gonzaga, pelo banditismo de Lampião e pela religiosidade manifesta na imagem de Padre Cícero, mas faltava algo. Faltava a narrativa que sintetiza parte do que é não somente o Nordeste, mas o Brasil. Uma história de luta, resistência, violência, fé, fome, pólvora... e água. Assim, chegamos em Canudos, na Bahia.

 
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Matéria obrigatória na escola – seja nas aulas de história sobre o início do período republicano ou nas de literatura sobre ‘Os Sertões’ – a cidade de Canudos é parada mais que necessária para viajantes que, como nós, querem explorar um pouco mais esse Brasil profundo e cheio de contradições.
 
A chegada à cidade já reserva a primeira surpresa. O letreiro de boas-vindas do município ostenta a controversa frase “o sertanejo é antes de tudo um forte”, com a qual Euclides Da Cunha, em ‘Os Sertões’, no capítulo ‘O Homem’, apresenta os moradores da localidade – da região em geral.



A frase, que fora de contexto pode soar elogiosa, expressa as ideias de determinismo racial e darwinismo social defendidas por Cunha, que acreditava em ‘raças superiores’ e ‘inferiores’ e era crítico da miscigenação, vista por ele como uma degeneração. É nesse contexto ideológico que ele classifica o homem de Canudos como “um forte”. Ou, em trecho subsequente, “Hercules Quasimodo”. Mas passada a primeira surpresa, encaramos a inscrição, talvez, como uma tentativa de ressignificar aquilo que ficou impresso em um dos mais marcantes livros da literatura brasileira.
 
É importante ressaltar que não se chega mais onde foi exatamente a primeira Canudos. Aquele território “não existe mais”. Após o massacre de 1897, em que mais de 25 mil pessoas foram mortas e toda a cidade foi destruída, uma nova leva de pessoas voltou a povoar o local, reerguendo Canudos. Ocorre que em o Estado brasileiro voltou a riscar a cidade do mapa, desta vez a colocando sob as águas da represa de Cocorobó, finalizada em 1968, o que obrigou toda a população a sair dali.
 
A cidade que atualmente leva o nome de Canudos fica próxima ao cenário onde ocorreu a guerra. A terceira Canudos era um distrito que se emancipou e acabou levando o nome do célebre povoado imortalizado em ‘Os Sertões’. No município, há estatuas de Antônio Conselheiro e dois museus. O primeiro é mais histórico, com documentos, registros, resumo do conflito, biografia de envolvidos, trechos de correspondências de Euclides da Cunha, artefatos da guerra, resquícios do povoado que foi dizimado etc.
 

Já o segundo local tem uma perspectiva mais artística, com pinturas, esculturas e instalações que revelam a visão do massacre por artistas locais e de fora. Compõem ainda o acervo fotografias feitas na ocasião. Os registros fotográficos dão dimensão do que foi o conflito. De um lado, os agentes do Estado brasileiro, bem postos e armados, contra um bando de miseráveis atrás de terra e condições de subsistência. Uma das imagens mais marcantes é a fotografia de Flávio de Barros intitulada 400 jagunços, que mostra um grupo maltrapilho desarmado e rendido, momentos antes da execução em massa (veja abaixo). 


(400 Jagunços. Autor: Flávio de Barros)

A antiga Canudos, hoje submersa, fica dentro de um parque, em que é possível entrar de carro, visitar uma trincheira em que conselheiristas combateram as incursões do Exército. No local há também o hospital em que as forças republicanas curavam seus feridos, memorial a mulheres mortas no conflito e o museu de Vó Isabel, construído e mantido por Paulo Régis, descendente de sobreviventes da primeira Canudos, em homenagem aos seus antepassados. No local há muitos artigos de guerra que ficaram para trás e foram coletados ao longo dos anos.
 
Entrevistamos Paulo Regis que contou como, com o tempo, tomou consciência da importância daquela história que estava submersa. Revelou que cresceu vendo pesquisadores levando artefatos e coletando narrativas orais de descendentes de conselheiristas e, adulto, percebeu que estava na hora de não deixar que nada mais fosse “levado” dali. Confira abaixo a íntegra da entrevista com Regis.
 

A terceira Canudos como tentativa de resistência
 
Falar dessa história é, antes de tudo, escolher palavras. Conflito? Revolta? Guerra? Massacre? Carnificina? Simplesmente não havia termo da língua portuguesa que desse conta do que ocorreu entre 1896 e 1897, com a matança de toda uma população. O termo capaz de descrever o que Euclides da Cunha viu só seria criado após a barbárie da segunda guerra mundial: o que houve em Canudos foi um genocídio.
 
Ir a Canudos – a terceira, vale ressaltar – é viver o mais próximo possível do que o Estado brasileiro tentou apagar, mas não conseguiu, por teimosia daqueles que insistiram em não ter sua história destruída, seja pela pólvora, seja inundada pela água.
 
Como disse no perfil feito de Paulo Régis, o sangue que lhe corre nas veias era para ter sido derramado há quatro gerações, mas o descendente de Vó Isabel está lá, contando as histórias que ouviu desde muito novo, e mostrando artefatos de guerra que encontrava enquanto brincava na infância. Visitar Canudos hoje, é ir além das páginas de Os Sertões, livro vingador de Euclides da Cunha, que denunciou os crimes do regime republicano, mesmo sendo... republicano convicto.
 
A mudança de postura de Euclides ao longo do conflito é parte do que torna o livro tão potente. Mas é importante enxergar a obra como fruto de seu tempo, escrita por um engenheiro de formação militar, movido por ideologias já citadas nesse texto. Portanto é enriquecedor dar um passo a mais e ouvir as narrativas dos sobreviventes, que são mantidas por seus descendentes. Ver como os locais expressaram artisticamente aquele evento traumático. Observar que artistas populares mantêm vivo o conselherismo, em certa medida transmudado de discurso político-messiânico para uma lógica mais próxima do identitarismo de nossos tempos. E perceber que a luta por terra, questão central do que aconteceu na primeira Canudos, ainda não foi superada.

Ouça aqui o episódio do Podcast Pelos Brasis sobre Canudos no Spotify.

A coluna Pelos Brasis é assinada pelos jornalistas Lucas Bólico e Isabela Mercuri. Acompanhe o projeto no InstagramTikTokYoutube e Spotfy

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