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Quinta-feira, 18 de abril de 2024

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Superexposição da TV prejudica o trabalho do ator, diz Marco Ricca

A exposição excessiva de atores durante um longo período em uma novela prejudica seus outros trabalhos. A avaliação é de Marco Ricca, atualmente no ar na TV Globo em Sangue Bom, que, apesar de ter começado sua carreira há mais de duas décadas voltado para o cinema, acabou também migrando para a televisão, assim como quase todos os grandes nomes da dramaturgia nacional.

"A televisão é diária, entramos na casa das pessoas o tempo inteiro, sem pedir licença. E uma novela, por exemplo, é um ano em que nos expomos um pouco demais", disse o ator de 50 anos em entrevista ao Terra, realizada durante o Festival de Cinema de Gramado, encerrado no último dia 17 de agosto, na serra gaúcha. "E eu acho que a imagem do ator tem que ser muito preservada, porque é um pouco a matéria prima para os personagens. Se a gente fica um pouco exposto demais, prejudica um pouco no sentido de outros trabalhos, até porque o público demora um pouco pra tirar a imagem que já fez de você por um trabalho X, um trabalho Y."

A televisão é diária, entramos na casa das pessoas o tempo inteiro, sem pedir licença. E uma novela, por exemplo, é um ano em que nos expomos um pouco demais
O problema, no entanto, não reside apenas no desgaste proporcionado pela superexposição. Se fosse assim, os atores poderiam fazer novelas apenas de vez em quando, dedicando a maior parte do tempo às paixões pelo teatro, cinema. Ou simplesmente não atuar nelas nunca mais. Mas os outros mercados da dramaturgia nacional ainda estão longe da lucratividade das telinhas, o que acaba obrigando a vasta maioria dos profissionais a, uma hora ou outra, acabar cedendo à realidade e mergulhando no universo televisivo.

"Por mais que o filme tenha que abaixar o orçamento, que tenhamos que chegar já filmando, mesmo assim a quantidade de cenas e possibilidades do personagem são muito menores, então nos dá a chance de verticalizar mais os trabalhos. Já a televisão é volátil. É uma pizza que tem que sair todo dia", metaforiza ele. "Tem vezes que as pessoas ficam esperando a próxima novela, mas não ficam esperando o próximo filme. Isso que angustia."

Concedida após o debate do longa Os Amigos, dirigido por Lina Chamie, a entrevista também abordou as particularidades do filme, escrito especialmente para Ricca, no qual o ator interpreta um arquiteto que, após o baque da morte do melhor amigo, passa a recordar momentos até então esquecidos da infância e procura se voltar às pessoas mais próximas, como Vânia, interpretada por Dira Paes. No elenco, há participação de Rodrigo Lombardi, Alice Braga, Caio Blat, entre outros.

"Para mim, fazer esse personagem foi também um pouco do resgate de algumas coisas minhas. Me fez pensar em como eu estava fechando muito as minhas portas, me lacrando, blindando muita coisa, enquanto na verdade essas portas eram muito escancaradas. Então eu gostaria de voltar, dar um chute em todas essas portas e deixar esses amigos, verdadeiros ou não, entrarem na minha vida de novo e a alegrarem ou não", explica ele. "Acho que, dos 30 aos 45, você fica num hiato, mas depois, quando chega aos 50, começa a lembrar de coisas muito mais antigas. Fica mais nostálgico."

Confira a íntegra da entrevista a seguir.

Parece fácil como discurso. Esse retorno à abertura dos tempos de infância é realmente possível? Afinal amigos vão e vêm, não há nada mais comum...
Acho que amizade é isso: você seleciona. Mas acho que com o tempo você vai se fechando, por uma série de coisas. Às vezes, por questões da vida, você muda de cidade ou casa e tem filhos... Aí você acaba ficando amigo dos pais dos amigos dos filhos e aí, quando vai ver, está em um outro caminho, vai se fechando, porque aquele amigo lá da infância foi fazer faculdade de direito, você, de arquitetura, e os amigos do direito ficaram mais amigos dele e vice e versa. Aí uma fatalidade com a perda, como acontece neste filme, faz com que você relembre daquela imagem de pureza daquele amigo da infância... Ela de alguma forma é uma onda que vai se perdendo, mas que você resgata rapidamente, nem que seja somente na memória. Então acho este resgate muito possível de acontecer, pois faz parte da história dos seres humanos resgatar as suas origens, seus sentimentos mais puros. Acho que dos 30 aos 45 você fica num hiato, mas depois, quando chega aos 50, que foi a idade em que cheguei agora, começa a lembrar de coisas muito mais antigas. Fica mais nostálgico

Terra - Você disse no debate sobre o longa Os Amigos que a televisão vulgariza a imagem do ator. Por que acha isso?
Marco Ricca - A gente fica muito exposto na televisão, porque ela é diária, entramos na casa das pessoas o tempo inteiro, sem pedir licença. E uma novela, por exemplo, é um ano em que se expõe um pouco demais. Na verdade, eu acho que a imagem do ator tem que ser muito preservada, porque é um pouco a matéria prima para os personagens. Então, se a gente fica um pouco exposto demais, e a novela faz isso, prejudica um pouco no sentido de outros trabalhos, até porque o público demora um pouco pra tirar a imagem que já fez de você por um trabalho x, um trabalho y. E quando eu falo isso não é só da TV, é do cinema também - e eu fiz muito cinema. É difícil para as pessoas arrancarem aquela imagem dos outros filmes e colocar a de agora, porque demora um tempo.

​É mais em relação à identificação do ator com aquele personagem específico...
É, porque às vezes esse personagem já vem com uma informação. Tem atores que explodem em uma novela das oito e é difícil de você tirar (essa conexão), porque os personagens ficam muito fortes. Então, quer dizer, o cara precisa ficar dez anos sem trabalhar? Não pode, precisa sobreviver, tem que fazer outra. É duro. A gente precisaria ganhar como os atores de fora, para podermos parar por uns cinco anos, ficar só fazendo nossas peças de teatro, nossos filmes. Mas tem que fazer junto com outras coisas. Então é mais nesse sentido de que o público precisa ter esse tempo. Quando o ator ainda não tem esse desgaste, ele está mais puro, então a primeira informação já é direta, já é a do personagem. Por isso que muitos diretores, durante uma época, preferiam trabalhar com não-atores, como se fosse uma descoberta, como se tivessem procurando um frescor de pessoas.

Como ator dedicado principalmente ao cinema e ao teatro, fazer televisão chega a ser enfadonho?
A televisão não tem tempo. Às vezes você grava em um dia o que a gente faz em um filme durante dois meses, um mês e meio. Então tem uma coisa que é quase mais artesanal no nosso trabalho, porque o teatro e o cinema têm esse tempo. Por mais que o filme tenha que abaixar o orçamento, que tenhamos que chegar já filmando, mesmo assim a quantidade de cenas e possibilidades do personagem são muito menores, então nos dá a chance de verticalizar mais os trabalhos. Já a televisão é volátil, tem que ter um capítulo por dia, não tem jeito. Não dá para falarmos, "ah, vamos parar para repensar a cena". Você tem que por no ar hoje à noite e de novo e de novo, e você está lá, na frente disso de alguma forma, tendo que decorar aqueles textos que às vezes gostaria de discutir um pouco mais, modificar. A gente tem esse tempo no cinema, no teatro, mas na televisão não tem. É uma pizza que tem que sair todo dia ali. E isso não impede de muitas vezes existirem grandes trabalhos - como a gente acompanha, não só de vez em quando, mas quase sempre -, mas não é um todo. O coletivo às vezes é duro. Claro, para um, dois personagens, às vezes aquilo sobra e é, querendo ou não, (a televisão) ao que o brasileiro assiste mais. Quem dera nossos filmes fossem assistidos ou pelo menos houvesse interesse tão forte de vê-los. Porque tem vezes que as pessoas ficam esperando a próxima novela, mas não ficam esperando o próximo filme da Liana Chamim. Isso que angustia. Se tivesse pelo menos uma rede interessada em ver o próximo filme... A gente tem isso com os americanos, mas ainda não temos com o cinema nacional.

​Mas o cinema nacional cresceu muito nos últimos anos, com produções de grande bilheteria e uma série de incentivos para ajudar os independentes. Como você vê este cenário atual?

Acho que a gente tem duas categorias claras hoje: a dos filmes um pouco menores, um determinado tipo de cinema que não está pensando primeiro no bilhete e mais na sua origem, na sua feitura, que depois vai ser vendido da melhor forma possível; e a do filme que é pensado primeiro no bilhete. Não há nenhum demérito nisso, mas é um outro tipo de cinema, que pensa em fazer um produto para vender muito. Então estamos no momento dessa dualidade no cinema que eu espero que tenha aí no meio várias outras correntes que consigam fazer um filme que também aposte na bilheteria, mas, ao mesmo tempo, tenha vigor e comprometimento com sua própria história, faça refletir. O importante é que estamos produzindo. Isso talvez para a nova geração não pese tanto... Hoje um um rapaz ali me disse, "você sabe que há exatos vinte anos você ganhou o prêmio de Melhor Ator em Gramado?". E eu não lembrava disso, porque foi numa época em que não havia longa-metragem. (Naquele ano) o Festival de Gramado não conseguiu um longa-metragem para exibir. Foi na época do (então presidente Fernando) Collor e ele acabou com o cinema nacional, então só tinha os curtas, aqueles de gente que fazia sem ganhar nada, que fazia por vontade. E naquele ano - desse filme que se chamava Batimam e Robim, do Ivo Branco - não houve nenhuma inscrição de longas-metragens. Isso é muito triste, uma história que mostra o que pode acontecer com o cinema nacional...

Então houve enorme crescimento do mercado...
Sim, nós estamos em um outro momento, florescendo pra burro, cheio de filmes. Podemos gostar de uns mais do que os outros, podemos querer fazer filmes de um jeito ou de outro, mas a gente tem a possibilidade de pelo menos fazê-los agora. E eu soube que neste ano houve mais de 150 inscritos em Gramado (foram 167 longas no total, sendo 117 brasileiros - deste, apenas oito entraram para a competição na categoria de produções nacionais). Olha que diferença: não ter nenhum há vinte anos - claro que em um período de boçalidade do Governo, que, graças a Deus, foi arrancado das tripas aí - para hoje, com mais de 150 inscritos e uma curadoria tem que escolher (quais inserir no evento). E, segundo eu perguntei, tem muita coisa boa que não pôde entrar em Gramado. Então isso é espetacular. Ainda teremos coisas muito maiores, vai ter um mercado verdadeiro.

Você disse que a diretora de Os Amigos, Lina Chamie, é muito rigorosa em seu cargo, deixando sequer o uso de improvisações por parte dos atores, algo comum entre outros cineastas. Esse rigor é melhor ou pior para se trabalhar?
São estilos diferentes. Mas eu sou um ator que gosta de ter rigor também no texto da pessoa, de tentar falar aquela frase do jeito que está ali, aquela coisa de, por mais que você fale "deixa eu mudar?", (o diretor diz) "não, isso não". Então você tem que achar o jeito de falar, de tentar dar credibilidade e verdade para aquele momento. É um exercício muito prazeroso. Assim como já filmei com gente em que o texto está em terceiro plano, em que entro com a motivação e o filme está sendo dito e falado em todas as questões de improvisações ali... São formas diferentes de fazer, mas, dentro desse limite que eu falo que a Lina dá, é como se fosse a liberdade dentro de um copo: você tem muita coisa ainda para fazer, mas tem um limite.

Qual é esse limite?
É a capacidade que Lina tem de contar uma história dessa forma tão vertiginosa, tão poética de contar o seu fato. Então não adianta eu vir com as impropriedades da minha vida mundana tentar interferir nessa poesia tão maravilhosa dela. A gente está lá para servi-la, assim como estamos com outros diretores. Mesmo quando improviso, tento improvisar dentro do coração desse cara, como é que seria esse personagem que aquele cara criou. Então isso é muito importante. Esse é um vício do ator, a gente interpreta (risos). A gente está lá para representar algo que alguém já previamente criou. Claro que a nossa contribuição está lá, a gente pode modificar às vezes muita coisa. Mas é dentro dessa coisa aí: a gente tem um texto a ser cumprido, um texto a ser contado e a Lina é realmente muito rigorosa, porque a poética dela não para, desde o começo a gente tem que ir lá e seguir aquilo.

​Théo, seu personagem em Os Amigos, é um sujeito que se descobre em um momento de grande sensibilidade ao saber que o melhor amigo da infância morreu e passa a relembrar os momentos do passado com nostalgia. De que forma você se identificou com o papel, escrito exatamente para você?

Para mim, fazer esse personagem foi também um pouco do resgate de algumas coisas minhas. Porque a Lina falou essa coisa do personagem que estava com as portas muito fechadas, como que a gente com o tempo as vai fechando, se enclausurando, cada vez deixando menos gente entrar na nossa vida, selecionando cada vez mais. Esse personagem começa desse jeito e, a partir de uma tragédia da vida dele, de um fato que acontece na vida de qualquer um, que é morrer um amigo, durante esse dia ela consegue, com essa poesia espetacular e a capacidade cinematográfica que ela tem, contar a abertura dessas portas. De alguma forma, ao filmar essa história, isso me fez pensar em como eu estava também fechando muito as minhas portas, me lacrando, blindando muita coisa, enquanto na verdade essas portas eram muito escancaradas. Então eu gostaria de voltar, dar um chute em todas essas portas, nessas travas, e deixar esses amigos, verdadeiros ou não, entrarem na minha vida de novo e a alegrarem ou não. Acho que me identifiquei muito nesse sentido: eu também gostaria de fazer essa trajetória de abrir minhas portas e janelas de novo para a vida.

Parece fácil como discurso. Esse retorno à abertura dos tempos de infância é realmente possível? Afinal amigos vão e vêm, não há nada mais comum...
Acho que amizade é isso: você seleciona. Mas acho que com o tempo você vai se fechando, por uma série de coisas. Às vezes, por questões da vida, você muda de cidade ou casa e tem filhos... Aí você acaba ficando amigo dos pais dos amigos dos filhos e aí, quando vai ver, está em um outro caminho, vai se fechando, porque aquele amigo lá da infância foi fazer faculdade de direito, você, de arquitetura, e os amigos do direito ficaram mais amigos dele e vice e versa. Aí uma fatalidade com a perda, como acontece neste filme, faz com que você relembre daquela imagem de pureza daquele amigo da infância... Ela de alguma forma é uma onda que vai se perdendo, mas que você resgata rapidamente, nem que seja somente na memória. Então acho este resgate muito possível de acontecer, pois faz parte da história dos seres humanos resgatar as suas origens, seus sentimentos mais puros. Acho que dos 30 aos 45 você fica num hiato, mas depois, quando chega aos 50, que foi a idade em que cheguei agora, começa a lembrar de coisas muito mais antigas. Fica mais nostálgico.

​Você está acostumado com papéis bastante dramáticos no cinema, algo que não deixa de ocorrer em Os Amigos. No entanto, o longa tem a curiosidade de trazer uma série de crianças que fornecem uma leveza bastante grande àquele dia específico na vida de Théo. Quais são os desafios de contracenar com elas?
Bom, criança é legal porque vem pura, sem vício, então você tem que também ir com as portas abertas, escancaradas para ver o que vai acontecer naquilo. E, de alguma forma, é como na vida: você não vai cair no buraco porque está com uma criança, mas também não vai deixá-la cair. Então, essa consciência, quando você está contracenando com uma criança - e de alguma forma a amparando também - não tem jeito de se tirar. De alguma forma você está ali também para servir. Como é normal na contracenação, mas com criança essa relação se potencializa.

As filmagens com crianças exigem mais paciência do ator?
Eu não diria paciência, porque é um frescor muito gostoso. Os moleques desse filme são muito bons. Tem uma cena que um deles me dá uma aula sobre super-heróis e aquilo, bicho... Poxa, ele tinha um monólogo inteiro, estava tudo decoradinho e (eu pensei) "meu Deus, de onde vem a capacidade dessa criança?". E o personagem estava claro ali pra ele, mas ao mesmo tempo que ele tinha que falar, tinha que fazer outras coisas, lembrar de ir para lá, para cá, olhar para um lado, abaixar para pegar um negócio - e tem uma hora que isso pode falhar, até com adultos. Mas com a criança você pode auxiliar mais, estar mais atento para isso não acontecer. E isso também te faz se sentir muito bem.

Terra
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