Música, gastronomia, artes visuais, artes cênicas, costumes. Quando uma pessoa sai de seu país, carrega consigo suas referências culturais. Em um momento de crescimento da xenofobia, mudar a perspectiva do sofrimento e enxergar o que há de bom na migração pode ser um desafio, mas nos últimos anos, o
Olhar Conceito se dedicou, diversas vezes, a contar a história de pessoas que deixaram sua terra natal e escolheram Cuiabá ou Várzea Grande para morar, e a riqueza cultural que isso trouxeram junto com elas.
Leia também:
Número de imigrantes deve aumentar e brasileiro se tornará mais xenófobo, alerta pós-doutora da UFMT
Para a historiadora e especialista em migrações climáticas da Universidade Federal de Mato Grosso Michèle Sato, o momento atual é sem precedentes na história mundial. Nunca se migrou tanto e, por isso, não é simples fazer uma previsão de quanto tempo leva para os imigrantes impactarem a cultura do país que chegam. “Hoje em dia você já vê [as mudanças] mais rápido, porque são muitas. Você vai ao shopping, por exemplo, na classe média rica, e vê aquelas lojinhas com exposição de indianos, venezuelanos, senegalenses. Na rua tem muitos trabalhos de uberização, então é mais rápido”, afirma.
No entanto, mesmo quando era muito mais difícil conseguir se deslocar, a imigração já alterava as realidades. “Esse momento não é um parâmetro correspondente aos anteriores. É alguma coisa absolutamente nova. E doravante agravada. [Mas muda] em tudo, né. Desde a agricultura, como o Japão fez, introduziu diversas formas e espécies de alimentação... na indústria e o jeito de falar, por exemplo”.
E a arte vem junto. Vem diluída na roupa, na moda, e em diferentes expressões artísticas. É o caso, por exemplo,
da assistente social Diela Tambanhaque. Natural de Guiné-Bissau, ela veio para Cuiabá fazer intercâmbio e, depois de idas e vindas, se instalou de vez em Várzea Grande, e hoje encanta as brasileiras com suas tranças e as roupas feitas em tecido africano que desenha e comercializa.

Diela
(Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)
Mesmo quem saiu bem cedo de sua casa, como o turco
Yusuf Dogan, 56, que vive há 20 anos em Cuiabá, também transmite o que aprendeu com os antepassados. Em seu caso, realiza esculturas em rochas, trabalhando somente com pedras de Chapada dos Guimarães.
Yusuf Dogan (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)
Na música, a influência pode ser percebida, por exemplo, com o rapper haitiano Esdras Altidor, mais conhecido como
Asid Adult-Man. Ele deixou seu país em 2012, viveu no Chile, e chegou a Cuiabá, onde continuou fazendo rimas tanto sobre seu dia a dia quanto para falar das mazelas sociais.
Para a pesquisadora Michèle Sato, a música é uma das experiências culturais mais difíceis de serem absorvidas no Brasil. “Porque a música brasileira é forte. Acho que a gente tem muito dessa ginga, e a gente também é um pouco imperialista. Você não conhece as músicas latinoamericanas dos nossos vizinhos. A gente tem muito dessa postura imperialista em relação à América Latina, à África... aos continentes pobres, aos países pobres de uma forma geral, a gente tem esse desdém”, lamenta.
Tentando mudar essa realidade está a venezuelana Rossbeli Margarida, que todos os dias, às 18 horas, comanda o programa de rádio
‘Noches Calientes’, na rádio comunitária Metrópole FM. O programa tem músicas de toda a América Latina – ou até mesmo de além-mar, e conquistou não só os imigrantes, mas também muitos brasileiros, que ligam para ela para pedir suas faixas preferidas.
Rossbeli (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)
Na gastronomia, não há o que se questionar. Mesmo antes da chegada dos imigrantes em Cuiabá, até mesmo os brasileiros gostavam de trazer pratos novos e diferentes e, com isso, conquistar sua clientela. Em 2017, o casal sudanês Limia Ali e Motaz Mobara inaugurou seu ‘
Mobi’, com a tradicional culinária árabe, e em homenagem ao filho Mobarak, que faleceu em decorrência de um câncer aos doze anos, em abril de 2016.
O restaurante tem um cardápio extenso, com doces tradicionais, kibes e esfihas, pratos como a kafta na bandeja, machawi de carneiro, kibe cru, shawarma, falafel e mais.
Quem também fez questão de trazer as delícias de casa para Mato Grosso foi o português Simão Morant. Por aqui, inclusive, ele criou seu ‘
sorvete de pastel de Belém’, além de preparar pratos tradicionais, como as ‘coxinhas de bacalhau’, que já estavam também no
cardápio de Dom João VI.
Domingos Rafael (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)
A francesa Isabelle Lebon veio para Mato Grosso no final dos anos 80, trabalhar como guia de turismo, onde conheceu o cuiabano Celso de Oliveira. Os dois chegaram a se mudar para a França, mas voltaram em 2014, já com cinco filhos, e montaram uma tradicional creperia na Morada do Ouro.
A ‘La Gourmandise’, ao contrário das creperias brasileiras, usa trigo sarraceno no preparo, o que torna a massa mais leve. A família também oferece recheios não tão comuns em terras tupiniquins.
Crepe na Gourmandise (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)
“Nada é isolado. Quanto tempo leva para a absorção da cultura? Se for uma cultura russa, vai ser mais difícil. Mas se for uma coisa que o Brasil já está no movimento, em dinâmica, já pulsa... aí é rápido”, explica Michèle Sato. Talvez seja por isso que foi um grande desafio para o médico haitiano Jean Richard Ileus, 35, criar seu restaurante de
comida caribenha. O foco dele é a mudança de hábitos. Assim, todos os alimentos são saudáveis, feitos com gordura animal e leite de coco, e sem nenhum produto industrializado.
A conclusão, para Michèle, é a absorção da cultura depende. Depende do contexto, da expressão, do valor, de cada coisa. A realidade, no entanto, é que essa miscelânea só tende a aumentar nos próximos anos, e Cuiabá deve se tornar uma cidade cada vez mais diversa.
Michèle Sato (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)