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Ungulani Ba Ka Khosa: a queda de um império, o nascimento de outro

Matheus Guménin

[Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos) não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que não é meu objetivo desenvolver aqui, e que não me caberia alcançar em meia página de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Aviso feito, vamos à conversa de hoje.]

Ungulani Ba Ka Khosa (1957- ) é um escritor moçambicano de origem changana e sena vencedor dos prêmios José Craveirinha de Literatura e Grande Prêmio de Ficção Moçambicana. É junto com José Craveirinha, Paulina Chiziane, Noémia de Sousa, Rui Nogar e Mia Couto um dos mais significativos escritores moçambicanos.

Ungulani Ba Ka Khosa estreou com o romance “Ualalapi”, sobre o qual conversaremos brevemente na coluna de hoje. Já posso dizer logo de cara (e o leitor desta coluna e/ou do romance pode confirmar o que aqui digo) que “Ualalapi” é um romance sofisticado, desafiador e complexo.

O livro é formado por diversos fragmentos de poucas páginas, que dão – cada um ao seu modo e com suas particularidades estilísticas – conta de um aspecto específico do Império de Gaza e de seu último imperador, Ngungunhane, em torno do qual as histórias de “Ualalapi” giram. Esses vários fragmentos (ou capítulos) formam juntos o grande e impreciso panorama ou mosaico da história de Ngungunhane.

Justamente na característica citada acima o romance mostra sua genialidade: ao recontar a história de uma figura tão ambígua quanto Ngungunhane, o autor se vale de relatos fictícios de guerreiros, súditos, esposas, tios e filhos do mesmo, relatos esses que alternam-se às vezes num mesmo parágrafo, criando conscientemente no leitor (através dos referidos meios artísticos) a confusão que aqueles que de fato conheceram Ngungunhane decerto sentiam.

O escritor age como um caçador que ataca o alvo por vários ângulos – a metáfora do caçador seria boa se, no lugar de matar o alvo, ele lhe desse vida; pois foi mesmo isso o que o escritor Ungulani Ba Ka Khosa conseguiu: dar vida nova ao Imperador Ngungunhane sem cair em idealizações nem em demonizações baratas. Restituiu-lhe a dignidade de figura dúbia, imprecisa e humana – absolutamente humana – que a história oficial portuguesa tentou apagar e ridicularizar no decorrer do século XX. Leiamos o belíssimo trecho abaixo:

“Ao entrarem no décimo dia do cerco os guerreiros olharam para tudo com vida e sem vida que a terra comportava desde o princípio dos princípios e chegaram à triste conclusão de que o mundo perdera a sua beleza e o vigor de séculos. O céu e a terra tomavam a cor de cadáveres estripados. Os dias sucediam-se aos dias ao ritmo de sonâmbulos senis. As nuvens de chuva passavam à distância e o vento galerno efundia cânticos tristes dos insignes guerreiros, mortos em batalhas de machos, com lanças a cruzarem-se no ar e os escudos a chocarem-se estrondosamente no capim devastado pelos homens e pelos cânticos da vitória que retumbavam pela planície pejada de cadáveres e de serpentes que silvavam, enlouquecidas pela visão infernal que se alcandorava na planície.

Agora, esbulhados do vigor dos seus antepassados, os guerreiros encaneciam à sombra das árvores pardas, vendo as lanças a criarem escarpas da solidão e os escudos a servirem de ninhos aos ratos.” (Página 79, Editora Caminho)

Ungulani Ba Ka Khosa já coloca as cartas na mesa muito cedo, se me permitem a expressão. Afinal, as epígrafes escolhidas para o livro são dois relatos que retratam o imperador como herói e outros dois que o retratam como um ser horrendo. A quinta epígrafe é a já célebre frase de Agustina Bessa-Luís: “A História é uma ficção controlada”. Assim sendo, cabe ao escritor preocupado com as questões sociais de seu povo e com sua história acrescentar as suas próprias histórias à História com H maiúsculo, de modo que a História oficial não sirva apenas aos interesses de quem sempre se beneficiou delas no velho jogo da colonização e da opressão. Contar a sua história é restituir a si mesmo a dignidade que lhe foi roubada. Sobre esse assunto me resta indicar ao leitor desta coluna de jornal o discurso “The danger of a single story” (“O perigo da história única” ou “O perigo de uma única história”) da grande escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, disponível no YouTube.

Como dito mais acima, durante quase todo o romance “Ualalapi” se instaura no leitor uma desorientação propositalmente causada pelo autor. Ao leitor ocidental que pouco ou nenhum contato teve com a cultura dos povos que formam o que hoje conhecemos como Moçambique os nomes dos personagens soam confusos, nomes que se parecem muito e que fazem o leitor sempre voltar algumas páginas para se assegurar de que este ou aquele personagem é quem está falando naquele ponto específico – efeito talvez muito similar àquele sentido pelos moradores do Império de Gaza ao ouvir os nossos nomes ocidentais e cristãos pela primeira vez. Além disso, a técnica narrativa desafiadora de Ungulani Ba Ka Khosa mescla duas histórias paralelas num único capítulo ou fragmento, de modo que em um mesmo parágrafo há, por exemplo, falas de guerreiros inimigos – confundindo o leitor através da genial sobreposição de histórias. Esse aspecto da técnica narrativa de Ba Ka Khosa procura se assemelhar à narração oral, que foi o mais prolífico meio de transmissão de conhecimento e cultura – mas não o único, já que a história era em algumas regiões registrada através de textos escritos em árabe e, é claro, através dos registros artísticos (não escritos) em vasos, armas, tecidos e outras peças de arte feitos pelos próprios membros dos inúmeros impérios em África. Os Ulemá do Tombuctu, por exemplo, faziam registro escrito de suas histórias, sua burocracia e seus costumes, como já apontou o professor Joseph Ki-Zerbo. Portanto, falar de África como um continente cujos muitos reinos e impérios simplesmente não registravam suas histórias é um grande erro e demonstra grande ignorância. Ainda sobre essa questão da transmissão oral (e tendo já deixado claro que havia sim registros escritos e artísticos em reinos africanos), escreveu Joseph Ki-Zerbo na “História Geral da África” que: “a tradição oral não é apenas uma fonte que se aceita por falta de outra melhor e à qual nos resignamos por desespero de causa. É uma fonte integral, cuja metodologia já se encontra bem estabelecida e que confere à história do continente africano uma notável originalidade.” (tradução para o português da UNESCO em parceria com o Secad/MEC e a UFSCar).
Voltando ao romance “Ualalapi”: a sobreposição narrativa de várias histórias é, portanto, um aspecto estilístico usado por Ungulani Ba Ka Khosa para se assemelhar à narração de caráter oral. Leiamos o trecho abaixo, por exemplo, no qual lemos lado a lado as palavras de guerreiros inimigos (sendo que um deles está dentro do cerco e o outro pronto para atacar esse cerco):

“Preparem-se para a vitória, guerreiros, preparem-se para matar esses invasores nguni. A razão está do nosso lado e os espíritos protegem-nos.
– Há pouco estava eu a dizer a Macanhangana que o leão ruge na selva. Com isso quis dizer que é chegada a altura, guerreiros, (...)” (Página 86, Editora Caminho)

Outro aspecto importante da sofisticada criação narrativa de Ba Ka Khosa é o uso de personagens que simplesmente interrompem a narração para contradizê-la apresentando uma outra versão, sendo então seguidos por outros personagens que por sua vez contradizem aquela versão apresentando uma nova, e assim por diante. Histórias novas surgem contra a história contada, que é dita e recusada, dita e modificada; e o resultado disso é um conjunto final formado por várias e opostas versões (como aponta a epígrafe do livro já citada mais acima).

O efeito alcançado é absolutamente sofisticado, e expõe não só o virtuosismo estilístico do autor, mas principalmente a concretização no próprio romance das contradições e da complexidade de qualquer situação, pessoa ou povo em qualquer época da história da humanidade. Ou seja: o autor não só narra a contradição, ele contradiz sua narrativa. Vejamos o trecho abaixo, no qual o próprio narrador é interrompido pelos personagens:

“No sábado último do mês terceiro da dor, Damboia morreu. (...) Damboia sofria da doença do peito que faz vomitar sangue pela boca, mas que ela vomitava entre as coxas, em paga da vida crapulosa que levara.
– Crapulosa?
– Não ligues. São palavras do vulgo. Não têm fundamento. Damboia teve a vida mais sã que eu conheci.
– Para onde vai o fumo, vai o fogo, Malule.
– Nunca hás-de encontrar água raspando uma pedra. Deixa-me falar. Eu conheço a verdade. Vivi na corte...” (Página 65, Editora Caminho)

Ou então o trecho abaixo, com as versões de um personagem, de outro personagem e depois do narrador:

“ – Ngungunhane sentiu-se regozijado.
– Não, creio que não. O único gesto que fez foi agradecer aos guerreiros pela batalha heróica e recolher à cubata sem contemplar a cabeça do seu inimigo.
Os guerreiros dispersaram-se em silêncio. Macanhangana voltou a beber durante as noites. Maguiguane teve que chamar um curandeiro para tirar-lhe do corpo o cheiro dos mortos. E consta que os homens que voltaram a passar pela planície de Chirrime tiveram que passar sobre cadáveres apodrecidos e por apodrecer durante uma manhã, uma tarde e uma noite. Sobre os cadáveres jaziam aves mortas pelo excesso do repasto.” (Páginas 88 e 89, Editora Caminho)

Ungulani Ba Ka Khosa é uma grande voz na literatura atual em língua portuguesa. Simples assim. Livros como “Ualalapi” (1987) e “Os sobreviventes da noite” (2005) merecem grande atenção do leitor que procura aquilo que de melhor se escreve em nossa língua hoje em dia.

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*A coluna Rubrica, publicada às segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Guménin. Matheus Guménin estuda literatura alemã na USP, escreve sobre literatura para jornais do estado de Mato Grosso, é tradutor e escreveu um livro ainda inédito de poemas, que sairá entre 2016 e 2017.
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