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Segunda-feira, 18 de março de 2024

Colunas

O universo sedutor (e arrebatador) de Tereza Albués

José Medeiros

Neste período de isolamento social forçado pela ameaça do novo coronavírus, ela tem sido uma companheira constante. Há noites em que me divido entre assistir a uma série da Netflix ou ir para cama mais cedo com a finalidade de ler mais algumas páginas de seus livros.

Ela é Tereza Albues, escritora mato-grossense nascida em Várzea Grande, em 24 de agosto de 1936, e falecida em Nova York em 5 de outubro de 2005.

Como Tereza chegou à minha vida? Em dezembro passado, estive na sede da Entrelinhas Editora e fui “intimada” por Maria Teresa Carrión Carracedo a levar para casa uma caixa com quatro livros da autora. Eles haviam sido lançados em uma edição comemorativa dos 25 anos da Entrelinhas, intitulada “Conexão Tereza Albues” e, ao ter em mãos a caixa divinamente ilustrada com obras de artistas da terra, não resisti. Comprei fiado e trouxe a caixa para casa.

A leitura propriamente dita só começou em meados de janeiro quando terminei de ler outro livro incrível (sou fiel aos livros que leio). Não marquei a data em que iniciei a leitura da obra de Tereza com “Pedra Canga”, primeiro livro da autora. Mas ocorreu com este livro um fato inusitado: acabei de lê-lo e, imediatamente, recomecei a leitura. Coisa de doido? Não foi a primeira vez que isso me aconteceu, mas é raro.

A verdade é que me apaixonei tanto pela prosa da autora que quis voltar ao início, reler cada página para poder sorver melhor os acontecimentos, os personagens inusitados com seus nomes ainda mais inusitados. “Pedra Canga” tem todos os elementos do realismo mágico que tanto apreciei na minha juventude. Lembra aquela atmosfera de Gabriel Garcia Marquez, só para citar o mais célebre dos escritores dessa escola literária.

Tudo parece fantástico, irreal, e, ao mesmo tempo, muito próximo da gente. Como se fosse possível. Em meio a tempestades tenebrosas, personagens sobrenaturais se misturam a outros tão carne e osso (bêbados, beatas, donas de prostíbulos, parteiras, etc) para contar uma história ambientada no bairro (fictício?) de Pedra Canga. Tudo nos é narrado através de uma menina/escritora, alter ego da autora Tereza. É pelos olhos, ouvidos e sensações da nhanhã que sabemos o que se passou na Chácara do Mangueiral e os Vergare, uma família de déspotas odiada e invejada pelos vizinhos.

Concluído no verão de 1985 em Nova York, última cidade em que a andarilha Tereza morou, “Pedra Canga” traz na capa uma obra da jornalista e artista plástica Vitória Basaia, de 2019.

Depois desse início promissor, continuei seguindo a orientação da editora Maria Teresa e passei à leitura de “A travessia dos sempre vivos”, cuja capa é ilustrada com uma obra de Humberto Espíndola (de 2016). O título me pareceu promissor e o mergulho foi tão ou mais intenso do que no livro anterior. Datado do outono de 1991, este livro vai mais fundo em sua abordagem do sobrenatural. São poucos os contatos na narrativa com o real. Mortos e vivos se esbarram o tempo todo, o que, de uma certa forma, justifica o título da obra. A saga da moça/narradora em busca da história de seu bisavô João Padre é comovente e altamente sedutora. A narrativa mistura as aventuras da própria narradora (seus encontros com os “sempre vivos”) com o resgate da trajetória de João Padre, que abandonou a batina no interior de Mato Grosso para se casar com Teodora, “negra, alta, linda, olhos enormes, inquisidores”. João Padre enlouquece de amor por Teodora e também de culpa por largar a batina, a vocação imposta pelo pai. Homem bonito, inteligente, culto, alterna momentos de lucidez e imensa ternura, com outros de total demência, que traz muito sofrimento a ele e sua família. Os personagens, que cercam essa trama atendem por nomes como Judite Louca, são tão familiares a nós que nascemos e já vivemos no interior de Mato Grosso!

Ao encerrar a leitura dessa segunda obra, comecei a ler o terceiro livro da caixa. “O berro do cordeiro em Nova York” – que diacho de título é esse? O livro foi concluído no verão de 1992 na chamada Big Apple e a capa traz um desenho digital da artista plástica Regina Pena (de 2016). Só essa capa já mereceria um artigo à parte.

Comecei a ler esta obra no período de isolamento social e ainda não terminei, mas passei da metade com folga. Fiquei absolutamente fascinada. Mal conheço a autora, mas é nítida a pegada autobiográfica do livro, que mistura fatos e acontecimentos tão incríveis que beiram o realismo mágico. Mas a menina/escritora, que vê no estudo a única possibilidade de fugir de uma vida de humilhação e opressão, está lá. Assim como seu berro. De dor, de raiva. O berro que sai fácil, quando provocado pela dor causada pelos vermes na barriga da criança malnutrida; o berro que não sai num momento de muita tristeza e revolta. Berro de cordeiro imolado.

Que força tem Tereza ao trazer para seus leitores fragmentos de sua própria história, da saga de seus antepassados, de seus familiares, vizinhos, dos algozes de seu pai, misturados a uma trajetória de ascensão e sucesso profissional surpreendentes e incontestáveis! A menina saiu do sítio do Cordeiro e foi parar em Nova York, onde constituiu família e faleceu em decorrência de câncer, às vésperas de completar 70 anos.

O último livro, ainda à minha espera, é “Chapada da Palma Roxa”, lindamente ilustrado com obra de Márcio Aurélio. Leio agora que “Pedra Canga” foi publicado em 1987 (Rio de Janeiro, Philobiblion, Coleção Prosa Brasileira nº 19); o romance “Chapada da Palma Roxa” foi publicado pela primeira vez em 1990 (Rio de Janeiro, Atheneu Cultura, Série Ficção Brasileira); “A travessia dos sempre vivos” foi publicado em 1993 pela Editora da UFMT; e “O berro do cordeiro em Nova York” teve sua primeira publicação em 1995 pela Editora Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro. Tereza teve mais um livro publicado (A dança do jaguar) e tem outros cinco (romances e contos) inéditos.

Que vida extraordinária! Todos nós, amantes da literatura, mato-grossenses ou não, deveríamos conhecê-la e louvá-la, mas a tirar por mim acho que não é essa a realidade. A editora Maria Teresa, apaixonada pela obra de sua quase xará, deu um passo ousado ao publicar de uma só tacada quatro de suas obras mais conhecidas. Que bom! Mesmo em tempos de pandemia – ou até mais do que nunca – é tempo de ler, entregar-se ao prazer da leitura que provoca nossa capacidade imaginativa, nos emociona e nos faz ficar indignados diante desse Mato Grosso tão cruel, tão desigual, tão povoado de coronéis que conduzem as vidas de outros seres humanos como se fossem bonecos de pano, meras marionetes. Não Tereza! Ela se rebela contra um destino previsível e constrói sua própria vida, heroína tardia de sua saga familiar.

Peguei o hábito de sempre olhar sua foto na orelha do livro para ver se encontro os traços da menina franzina, “feia”, que nasceu com vocação para ouvir e contar histórias. Vejo uma morena bonita, de sorriso largo e vasta cabeleira castanha. Queria ter conhecido Tereza em vida, mas agora ela se faz presente por meio de sua literatura. Jamais esquecerei Tereza Albues e convido quem não a conhece a fazê-lo o quanto antes. Você pode seguir meu roteiro ou fazer o seu próprio roteiro. Você não vai se arrepender.

*Martha Baptista é jornalista e escritora, com vários livros publicados.
 
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