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Clarice Lispector: Lóri & a outra Lóri
Autor: Matheus Guménin Barreto
29 Ago 2016 - 09:14
Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: ‘Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos) não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que não é meu objetivo desenvolver aqui, e que não me caberia alcançar em meia página de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Aviso feito, vamos à conversa de hoje, que será bem breve’.
Clarice Lispector (1920-1977) foi uma romancista, contista e jornalista brasileira. Suas obras mais lidas e celebradas hoje (já que, como Hans Robert Jauss e Haroldo de Campos – entre outros – apontam, o cânone é ou deveria ser atualizado de geração em geração [e eu diria até que de grupo social em grupo social] para melhor complementar e mais enriquecer aquela geração em questão) são talvez contos esparsos (em especial os reunidos em “Laços de família” [1960]) e os romances “A paixão segundo G. H.” (1964) e “A hora da estrela” (1977).
Obras como “A maçã no escuro” (1961), “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres” (1969) e “Água viva” (1973) ficaram por hora relegadas a um segundo plano. Acho que não há que se lamentar e lamuriar, já que, se assim aconteceu, foi porque aquele tempo ‘tinha sede’ de “Laços de família”, “A paixão segundo G. H.” e “A hora da estrela”, grandes obras – digo ‘tinha sede’, mas tento não cair em qualquer tipo de determinismo social absoluto, como se a leitura desses livros em especial fosse resultado de alguma aritmética infalível; sabemos que esses determinismos sociais absolutos não existem nem nunca vão existir, eles são sempre relativos.
O tempo ‘tinha sede’ daquelas grandes obras, portanto. Mas talvez seja já tempo de voltar-se para outras grandes obras da autora, como os “A maçã no escuro” (1961), “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres” (1969) e “Água viva” (1973) que citei acima. São certamente livros mais complexos do que os célebres, quando por ‘complexo’ entendo o fato de alargarem as fronteiras da narrativa tal qual entendida na época (talvez a exceção seja “A paixão segundo G.H.”). Ou seja, se Lispector fosse, por exemplo, uma compositora, suas obras mais celebradas seriam composições tonais e teriam melodias acessíveis, enquanto as três que citei e que foram relegadas a um segundo plano beirariam a atonalidade, cheias de sequências difíceis e quebras constantes de melodia – sendo, nessa lógica que aqui imagino, “Água viva” a obra que cairia de fato e quase completamente na atonalidade (ainda nessa lógica musical, no panorama da literatura as obras mais atonais seriam as dos escritores da poesia concreta, que seriam análogas ao dodecafonismo de Arnold Schoenberg [o que pode ser tanto um elogio quanto uma crítica, é claro]). Enfim, de volta à literatura!
Conversaremos hoje muito brevemente sobre uma das obras normalmente ignoradas: “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres”.
A estrutura do livro é relativamente simples, e remete aos romances de formação (ao Bildungsroman, no termo alemão) cujas páginas dão a ver o desenvolvimento de um personagem, normalmente o central (seja esse desenvolvimento da natureza que for: psicológico, profissional, amoroso). Tal desenvolvimento pode tanto coincidir com a saída da infância e da adolescência e a consequente chegada à idade adulta quanto abarcar apenas uma curta época da vida do personagem, desde que no relato ele passe por grande e definitivo amadurecimento. “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres” poderia então, como já dito acima, ser lido como cria dessa larga família do Bildungsroman.
Em poucas palavras: no romance em questão, Lóri (apelido de Loreley) é uma professora de ensino fundamental que atravessa a selva mental de si mesma para conhecer a si e alcançar a (ainda que sempre fugaz) consciência plena do Eu, de seu lugar no mundo e da relação do Eu com o Outro. Quem a guia (ou melhor: pensa guiar) nos primeiros passos é Ulisses, um professor universitário de Filosofia, de modo que entre os dois um relacionamento amoroso vai se construindo à medida que cada um se aprofunda mais no conhecimento de si mesmo, como se estivessem os dois ‘se preparando’ para o amor. E a ‘preparação’ se daria principalmente através da ‘consciência plena’ de si.
Lóri é de uma curiosidade santa e laica, mas humilde. A aprendizagem é um caminho, não é um conhecimento parado. É um conhecimento que avança, e não fica nem preso só no Eu nem preso só no Outro. Não se trata nem de querer só estar no Outro nem de querer só estar em Si, já que estar no Outro é também e principalmente estar em Si.
Essa ‘consciência plena’ é uma utopia que pode atender por vários nomes, um deles ‘Deus’, e sendo utopia nunca se pode alcançar; o que se pode, no entanto, é pensar encontrar ecos dessa utopia, é a rápida e consciente mentira de tê-la agarrado, nem que por alguns instantes (se é que o tempo pode ser dividido em ‘instantes’ nesses ‘estados de graça’, como a protagonista os nomeia).
Então ainda que o fim (a ‘consciência plena’, o ‘amor total’, a ‘graça eterna’) seja uma utopia, mirar nela é avançar, é ir em frente e ir mais fundo. Mirar nela é trilhar sua aprendizagem, aprendizagem que Lóri vai construindo com suas próprias mãos e seu esforço moral.
Se me permitem um comentário absolutamente pessoal (já que isto aqui não é crítica literária, apenas conversa): poucos personagens ficcionais do século XX brasileiro são capazes de causar tanto desconforto quanto Ulisses, o professor de Filosofia. Sua presunção e seu didatismo repleto de superioridade acabam fazendo dele uma figura extremamente cansativa, e talvez por isso mesmo mais verossímil. Quem nunca conheceu um homem professoral, o espécime mais comum do ‘homo pedantis’?
A posição ocupada por Ulisses na trama (a de ‘mentor’) e suas várias frases sexistas mereceriam grande atenção por parte das pesquisas em literatura brasileira, se é que já não há pesquisas do tipo sendo feitas agora. De qualquer forma, fica a sugestão para uma hipotética estudante de Letras lendo esta coluna.
Os meandros da aprendizagem de Lóri vão, obviamente, muito além de Ulisses, e chegam àquela região complexa do pensamento humano na qual tudo de importância vital acontece. Chegando aí é que Lóri sai de si, curvando-se é que ela levanta os olhos; o Eu e o Outro, o Aqui e o Lá mesclam-se e transmutam-se no ‘estado de graça’ de Lóri. Enfim, a Lóri do início do livro é a mesma do final, mas é também completamente diferente; é cada vez mais profundamente Lóri.
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*A coluna Rubrica, publicada às segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Guménin Barreto. Matheus Guménin Barreto faz mestrado em literatura alemã na USP, escreve sobre literatura para jornais do estado de Mato Grosso, é tradutor e escreveu um livro ainda inédito de poemas, que sairá entre 2016 e 2017.
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