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Sexta-feira, 29 de março de 2024

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Conheça a história da caminhoneira trans que foi pastor, soldado e marido antes de 'renascer'

Foto: Rogério Florentino Pereira/Olhar Direto

Conheça a história da caminhoneira trans que foi pastor, soldado e marido antes de 'renascer'
Na mitologia grega, Afrodite - a deusa do amor, da beleza e da sexualidade - nasceu da espuma que surgiu quando Cronos cortou os genitais de Urano e os arremessou ao mar. Apaixonada por água, Afrodite Almeida Araújo, moradora de Cuiabá, também nasceu a partir de cicatrizes, já aos 65 anos, quando finalmente – em suas palavras – deixou de ser enclausurada em si mesma, e assumiu de vez a identidade feminina. Estrela de uma propaganda da Shell no último dia 5 de junho, ficou nacionalmente conhecida por sua trajetória como caminhoneira. Antes de seu nascimento, no entanto, já foi também pastora, soldado do exército, dona de empresa e teve que enfrentar os olhares e estranhamentos de – quase - todo o mundo.

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Afrodite nasceu no Paraná, na cidade de Jacarézinho. Na pré-adolescência, preferia usar calcinhas, e quando seu seio não cresceu, brigou com a mãe. “Perguntei: 'Mãe porque meu seio não cresce?' E ela falava: 'porque homem não tem seio'. 'E o meu, porque não cresce?', perguntava. 'Porque você é homem', ela respondia. E eu, sem entender o que era homem, o que era mulher. Não sabia”, lembra.

A reação de sua mãe, ao contrário do que acontece em muitas famílias, não foi de briga. Espírita, ela explicava que o filho poderia ter uma alma de mulher, mas que nesta encarnação tinha vindo como homem. “Alguma coisa você tem que resgatar como homem, é uma missão”, ela dizia.



Ela acreditou. Cresceu, se casou aos 25 anos com uma mulher, abriu uma empresa e se mudou, primeiro para São Paulo, depois para Corumbá e, finalmente, para Cuiabá. Apesar de usar roupas masculinas e ter uma ‘casca’ que enganava bem quem a via de fora, por baixo a lingerie sempre esteve presente. “Eu gostava de estar com alguma coisa que eu tirasse e ficasse a marca. Então eu apertava o sutiã o máximo que dava. E se alguém percebesse, para mim era o máximo”. A única exceção foi quando serviu ao exército. “Eu pensava: se eu levar um tiro e morrer, tudo bem. Mas se eu for ferida eles vão tirar a minha roupa e ver que tenho algo diferente”, lembra.

A primeira esposa nunca falou abertamente sobre o assunto, mas percebia. “Algumas vezes, ela encontrava calcinha no meu bolso, mas sempre nos respeitamo. Ela nunca comentou nada”, lembra. Foi com ela que Afrodite descobriu o que sua mãe queria dizer com sua ‘função’ como homem, ao se tornar pai.

“Nós dois já sabíamos, na lua de mel mesmo, que não era aquilo que queríamos. Ela queria ir para o Rio de Janeiro continuar estudando. E eu queria ir para Manaus, porque eu sempre gostei de água, queria mexer com barco. Mas naquele tempo não existia divórcio”. Quando estavam prestes a anular o casamento – o que era possível de fazer até completar o primeiro ano – veio a reviravolta.

“Um dia eu cheguei em casa e me deu vontade de fazer sexo com ela, porque nós saímos, fomos ao cinema, depois tomar sorvete. E ela meio que recusando, fazendo aquilo que era costume dela. Então o que eu fiz: eu meio que forcei. Mas nenhum de nós dois tinha ideia do que ia acontecer, nunca usamos preservativo nem nada. Passado um mês, ela começou a sentir dores”.

A notícia da gravidez mudou totalmente os planos do casal. O nome escolhido, Tatiana, veio de uma admiração antiga de Afrodite pela Rússia – já que seu pai era membro do Partido Comunista Russo. Ela e a mãe de sua filha ficaram juntas, ainda, por quinze anos.

Depois da separação, Afrodite conheceu sua segunda companheira, que era bem mais jovem. Elas viajavam juntas no caminhão – que dirigia principalmente para comprar materiais e levar para as obras de sua empresa de eletrotécnica – e Afrodite chegava a dormir de camisola, o que sempre fazia quando estava sozinha. 

A namorada nunca se incomodou, mas o relacionamento não deu certo. Depois disso, a caminhoneira ficou solteira por alguns anos, mas ainda escondia sua identidade no mundo do trabalho e em locais formais. Até que conheceu a mulher que mudaria sua vida para sempre.

Ela era evangélica, e Afrodite passou a ir à igreja, onde se tornou pastor. O relacionamento era conturbado. Apesar de ‘desconfiar’ da identidade de gênero do companheiro, a mulher se revoltava toda vez que percebia a alcinha do sutiã por baixo do paletó. Chegou, inclusive, a rasgar várias roupas.

Em 2013, o casal se preparava para mudar para o Ceará. Afrodite vendeu seu caminhão e comprou um menor, para fazer frete. Foi até Fortaleza, instalou a esposa em uma casa, e voltou para Cuiabá para terminar um trabalho e buscar o resto das coisas. Foi aí que recebeu a mensagem da companheira, dizendo que não queria mais o relacionamento. Ela ficou com tudo, e Afrodite somente com o novo caminhão.

“Logo que eu vi a notícia no telefone, dela falando que não queria mais que eu fosse, falei: Bom, graças a Deus me livrei. Então comecei a usar camiseta feminina, saia, unha pintada e tudo mais”.

Vida nova

Depois do nascimento de Afrodite, ela precisou lidar mais diretamente com o preconceito. Dois de seus irmãos, por exemplo, começaram a tirar fotos escondido em sua casa, das roupas e sandálias, e a mandar para sua filha, que continua morando no Paraná. “Mas ela nunca ligou. Ela falava: pai, seus irmãos ficam me perturbando. Não vou mais atender ninguém”.

Agora, o discurso mudara. Se antes Afrodite justificava as unhas pintadas como uma forma de esconder a ‘sujeira’ decorrente do trabalho pesado, e chegava a falar para os colegas caminhoneiros que as suas roupas eram fruto de uma aposta, depois de sair da prisão de si mesma, ela percebeu que não precisava mais se explicar.



Fez um Boletim de Ocorrência contra os irmãos, entrou com processo para conseguir hormônios e a cirurgia de redesignação de sexo pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e está na fila. Chegou a tomar anticoncepcional por conta própria para que os seios crescessem, mas teve problemas de gordura no fígado e aumento de glicose, e voltou a cobrar sua psicóloga, que preferiu receitar a prótese mamária.

“Eu também pensei em vender meu caminhão e fazer a cirurgia no particular, mas não tenho coragem. Eu tenho ouvido e visto que os médicos, muitos deles, fazem só pelo dinheiro. E há casos de sequelas e pessoas que perdem a vida. Pelo que fui informada, como é de graça, as melhores equipes estão no SUS. Por isso estou aguardando”.

Para ela, a cirurgia vai consagrá-la mulher. Até hoje, Afrodite nunca teve um relacionamento com homem, apesar de não se interessar mais por mulheres. O sexo ainda é uma barreira. “Eu me sinto muito solitária. E eu me seguro, não dou chance para os homens. Não tenho como aceitar um homem, porque eu não quero ser um travesti. Mas se eu não conseguir a cirurgia acho que vou acabar assim, sozinha”, lamenta. “Está na minha cabeça. Eu tenho medo. Ainda é uma barreira. [Mas] eu quero estar na minha casa, ter uma pessoa para eu cuidar, ser cuidada... é o meu sonho. Na verdade, desde criança eu tinha vontade de ser mulher. Se eu chegar na idade que estou e não conseguir, é porque não é para acontecer nessa encarnação. Porque não é para sexo, para nada. É para a minha realização”, finaliza.

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