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Quinta-feira, 28 de março de 2024

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ENTREVISTA

Documentário que conta história 'apagada' de mulher da luta camponesa volta à exibição 10 anos depois

Foto: Divulgação

Filmagem do documentário

Filmagem do documentário

Um filme que, mesmo depois de dez anos da estreia, ainda é atual. Um documentário que decidiu focar na história silenciada. Uma mulher que parecia estar ‘por trás’ de um homem, mas estava à frente. Esta é a história do documentário ‘Memórias Clandestinas’, que conta a vida de Alexina Crespo, primeira esposa de Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas – embrião do pensamento sobre reforma agrária no Brasil. O longa-metragem é da professora Maria Thereza Azevedo, doutora em artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), e, mesmo sem ir para o circuito comercial, já rodou o mundo, e foi transmitido em festivais, congressos e universidades.

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No próximo dia 4 de julho, ele será exibido novamente no Cineclube Coxiponés, seguido de um debate. A entrada é gratuita. O Olhar Conceito conversou com a diretora e idealizadora do projeto, que contou porque a história de Alexina – que faleceu em 2013 – permanece tão pulsante.

Leia os melhores momentos da entrevista:
 
Olhar Conceito - Quando você se interessou pelo tema e começou a produzir este documentário?

Maria Thereza Azevedo
– Na época que eu fiz eu tinha terminado o doutorado, em 2002, e eu fiz em artes cênicas na linha de literatura dramática, para trabalhar questões da dramaturgia com a produção de um roteiro de ficção.

OCOnde foi seu doutorado?

MTA – Na USP. E a história era de três mulheres que  se envolviam na luta armada. Uma em 35, outra em 64, e a terceira seria uma mulher ‘louca de rua’. O filme conta a história em três tempos diferentes, e a mulher é como se fosse a história brasileira, é a mulher como o país. Eram três momentos da política brasileira. E eu tive vontade de conhecer na realidade alguma mulher que tinha se envolvido de alguma maneira. E eu comecei a procurar e encontrei três mulheres, mas eu me interessei muito por uma delas, que ninguém conhecia absolutamente nada da história.

OC E como você chegou até ela?

MTA – Por via das outras, da Elizabeth Teixeira. Eu fui parar lá no Nordeste, e quando conheci a Alexina Crespo, que foi a primeira esposa do Francisco Julião, foi através de um namorado da minha filha na época. Ele fazia doutorado em sociologia e era de Recife. (...) Ele foi me indicando as pessoas, e eu cheguei na Alexina. E eu me interessei mais por ela porque era uma mulher, que na época tinha 80 anos, e não tinha absolutamente nada a respeito da história dela, porque ela era clandestina. E eu comecei a me organizar para trabalhar com ela. Só que demorou muito tempo, porque eu fazia nas férias.

Eu tentei ouvir [os personagens] separadamente e vi que não dava certo, porque ela não falava.

OC – Não falava sobre o assunto?

MTA – Era um silêncio. Parecia que ela tinha feito voto de silêncio. Eu não conseguia conversar com ela. E eu a visitei várias vezes pra ela pegar confiança  em mim, e ela conseguiu, e ela ficou confiante, topou fazer, fui várias vezes na casa dela.

OC E ela começou a falar depois de um tempo?

MTA – Não. Ela desviava, falava de outra coisa. Era muito inteligente. E eu vi que ouvi-la separadamente não dava. O que eu fiz? Eu ouvi os quatro filhos, e peguei todos os depoimentos longos, incríveis. Parecia que eles nunca tinham falado, e quando decidiram, começaram a falar aos borbotões, foi jorrando. E eu observei todas as entrevistas em separado e vi as histórias que batiam uma com a outra – claro que de pontos de vistas distintos – e fui organizando. E eu comecei a perceber que era um desenho dramático. Tinha a situação inicial, o primeiro plot, que era a chegada dos camponeses, a infância na casa da família... depois, quando começam com a luta armada, a organização das ligas camponesas, até o exílio, que é o ápice, após o golpe de 64. Foram quinze anos que eles ficaram fora.

Alexina (Foto: Reprodução)

OC Ficaram onde?

MTA – Em vários lugares. E a casa ficou com todas as coisas, e tudo no lugar. A Alexina viajou para o noivado da filha, que estava em Cuba, e não pode voltar mais. Então as coisas ficaram, e a casa é um personagem importante também. E nós fomos visitar a casa, e ela está totalmente deteriorada, acabada. E eles contam da casa da infância como uma casa incrível... até os cheiros eles falam, as frutas no quintal, o fogão a lenha...

Então a estratégia que eu utilizei para contar essa história foi exatamente fazer um roteiro dramático. Mandei o roteiro para os filhos, e nós juntamos a família num domingo numa casa das netas, e num domingo inteiro nós gravamos com duas câmeras, e pela manhã passamos pela infância, e logo depois fomos indo na ordem.

OC – Você gravou a história como se fosse uma ficção?

MTA – Não, é a história real. Só a estrutura que é ficcional.

OC – E neste dia o que você gravou?

MTA – Eu juntei a mãe, os dois filhos, os netos, todo mundo em volta ouvindo o que eles tinham para contar, e eu mandei um roteiro com tópicos, e fui levantando questões, colocando palavras sobre o que eu poderia levantar. Essa foi a estratégia para ouvir, para que ela falasse. E na medida em que os filhos foram falando, ela acabava entrando no assunto, porque estava falando com os filhos. Eles já tinham o roteiro, e eu tinha combinado tudo com eles. E tinha momentos em que ela falava: ‘não foi assim...’ e aí ela começou a completar a fala deles. E virou uma história de família. Começa, inclusive, eles olhando o álbum de família, vendo filme super8...

OC – O que mais te surpreendeu nessa história da família e dela?

MTA – A Alexina era dona de casa, mas ao mesmo tempo era a que escrevia as petições para o Francisco Julião. Francisco Julião é uma figura famosa, que foi líder das ligas camponesas - essa ideia de reforma agrária vem de lá – e as pessoas inclusive achavam um absurdo eu fazer um filme sobre ela e não fazer sobre ele. Mas eu falava que o que me interessa é que ela é uma mulher e ela é uma total desconhecida. (...) Eu corri um risco incrível dela não falar, dessa história não conseguir ser amarrada, risco pelo fato de não ter nada escrito sobre ela...

OC – Chegou crua...

MTA – A história emergiu a partir das próprias pessoas. E a partir daí eu fui atrás de material de arquivo. Eu tenho numa primeira camada a história da família, na segunda camada a questão política do Brasil. No momento em que eles estão vivendo aquelas questões todas... porque tem situações complicadíssimas. Ameaçavam o Julião e falavam que iam enforcar os filhos no quintal. Eles mandavam coisas anônimas para ele quando ele começou a se envolver muito nas ligas.

Se começa o filme com a questão da infância muito feliz, alegre, e com a chegada dos camponeses eles aderem. Julião era advogado, e ela vira o braço direito dele. Ela começa a fazer uma série de ações, de missões, inclusive missão para fora do Brasil, mas tudo na clandestinidade.

OC – E tudo sem ter reconhecimento... Existem muitas histórias apagadas de mulheres. Sua intenção era trazer esse outro olhar?

MTA – A questão da mulher já é meu tema há muito tempo. Esse roteiro que eu escrevi, os roteiros que estou escrevendo agora, todos são voltados para a questão das mulheres. Esse apagamento da história feminina sempre foi uma coisa que me incomoda muito, e já há muitos anos. E era a busca por uma personagem feminina que tivesse na cochia. (...) Mas ela fez umas coisas que são típicas de uma aventureira. E isso também me atraiu muito, esse personagem.

E a outra coisa que me atraiu muito nela é que ela usava piteira, fazia a unha, andava de salto, arrumava cabelo... ela sempre teve esse estilo. E a imagem que a gente tinha de uma guerrilheira era alguém de botina, de camisa... e, no entanto, ela foi uma pessoa que andava na maior estica. (...) E essas controvérsias, essas coisas ambíguas dela, sabe, e ao mesmo tempo a proteção da família...

Por exemplo, quando eles estavam no Chile, na época do Allende, em uma situação super difícil, eles comiam só uma sopa no dia. E ela ia na feira, arrumada, pegar os legumes que sobravam. E ela tinha uma visão de estrategista não só na família, mas ela também na luta. Ela organizou esconderijos pra eles quando veio o golpe no Chile... tem uma série de histórias dela muito interessantes.

OC – Ela chegou a assistir ao filme?

MTA – Claro! Ficou emocionadíssima, chorou.

OC – Você demorou quanto tempo para fazer o filme?

MTA – Na realidade não foi direto, porque eu gravava nas férias. Comecei no final de 2003, em 2004 gravei mais um pouco, aí comecei essa busca da pesquisa, porque foi uma pesquisa longa de checagem dos fatos. (...) porque a história foi toda formada assim. Não tinha alguma coisa e eu fui lá filmar, simplesmente. Fui buscando esses materiais. Por isso que tudo nele é documentário, todas as pistas, as fontes, eu tentava confirmar com outras pessoas, porque são histórias absolutamente inéditas.
E eu consegui vários filmes de arquivo para localizar a época. Na terceira camada que está a história do país, tem muito filme de arquivo que mostra o que estava acontecendo no Brasil, na América Latina, naquele momento, e o que aconteceu antes.

OC – Foi seu trabalho mais difícil?

MTA – Foi um trabalho muito difícil, mas muito gratificante. E que eu acabei bancando uma parte dessa produção. O Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (NEAD) ajudou com uma parte, a universidade onde eu trabalhava também colaborou com outra parte, e eu pedia câmera emprestada, as pessoas que trabalharam iam porque elas gostavam do tema... Eu conseguia passagem para as pessoas... Então eu acabei produzindo também. O filme foi feito com essa vontade de dar conta de uma história, porque vi que tinha uma história incrível ali e ela precisava ser contada. Era a emergência de uma história que precisa ser contada. Teve muitos colaboradores.

OC – E o resultado foi o esperado, ou tem alguma coisa que você acredita que precisava ser diferente?

MTA – Então, dentro daquilo que foi planejado, o resultado foi o esperado. A principio foi um filme de 52 minutos, aí em 2007 ele foi adaptado para televisão, com 70 minutos, e aí entraram pesquisadoras mulheres. Porque eu queria evitar essa coisa acadêmica, mas tinham algumas informações que precisavam ser passadas, então eu busquei pesquisadoras da história e da sociologia que pesquisaram ligas camponesas dentro de ciência política, e elas contribuíram.

OC – A que vai ser exibida agora é a segunda edição?

MTA – Sim, porque é a mais completa. Em termos de informação. Ela traz informações que são muito boas dessas pesquisadoras de peso. Mas o filme já estava pronto, então eu não parti da pesquisa delas para fazer o filme, elas entraram com as informações em momentos que a gente achou que era necessário esclarecer melhor aquele assunto.

OC – E porque exibir esse filme novamente agora?

MTA – Ele ganhou o Festival Internacional de Cinema Feminino (Femina) como melhor documentário brasileiro, concorreu com mais de cem do Brasil inteiro, foi exibido em televisão por um tempo, e foi exibido em vários congressos... Congresso de sociologia, de história, de ciências sociais... eu soube até que fizeram pirataria. Ele se espalhou. E colocamos no Youtube uma versão, e várias pessoas começaram a utilizá-lo nas universidades para discussões. Ele entrou para a lista dos 50 filmes sobre ditadura, junto a vários outros brasileiros, e ele está em várias listas e circula no Brasil inteiro. (...)

Agora, nesse momento, teve a Jornada Universitária da Reforma Agrária (Jura), e eu vi que eles estavam anunciando, ia ter vários filmes, e eu ofereci. E passamos. E o debate foi incrível, as pessoas ficaram [chocadas] de como tem a ver com a situação atual. Nunca eu vi as pessoas tão interessadas nesse filme como agora. Foi um interesse incrível. E eu falei, então vamos fazer uma exibição, já que as pessoas estão querendo. Então eu falei com o Diego [Baraldi] e ele abriu este espaço, e vamos fazer um debate.
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