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Domingo, 28 de abril de 2024

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especial dia das mães

Depois de criar quatro filhos, mulher de 81 anos vive em abrigo por vontade própria e ri da solidão

Foto: Isabela Mercuri / Olhar Conceito

Juraci vive no Abrigo Bom Jesus há cinco anos

Juraci vive no Abrigo Bom Jesus há cinco anos

O sorriso, a lucidez e a conformação de Juraci de Melo Fontana, 81, é raridade no ambiente em que ela vive. Morando há cinco anos no Abrigo Bom Jesus – por livre e espontânea vontade – a paulista não reclama de solidão: pelo contrário, acha até que tem gente demais para conversar. Depois de criar e formar quatro filhos e incontáveis netos, hoje ela passa os dias com seus pensamentos e livros.

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Juraci é paulista e veio para Cuiabá há dez anos em busca de um território que não será tomado pela água quando os mares invadirem a terra. Para o grupo que ela participa, esse território fica em Chapada dos Guimarães. Juraci é uma das criadoras do grupo ‘Auto Conhecimento Padrão Hume’, uma dissidência do Universo em Desencanto.

“Eu era da Federação Espírita da cidade de São Paulo, depois fui para o Universo em desencanto e fiquei lá dez anos. Foi lá que conheci meu grupo. Quando saímos, nos unimos pelo amor. Não tínhamos um mestre ainda, nem nada. Só o amor nos unia”, contou Juraci, enquanto se balançava na cadeira de fio do abrigo.

A criação do grupo foi há quarenta anos e, segundo ela, hoje em dia seus ‘netos’ (como ela chama os que participam do grupo) estão espalhados por todo o mundo. “Tenho neto em São Paulo, em Minas Gerais, em Santa Catarina, no Chile...”.
Seus netos de sangue vivem por aqui. O mais novo tem 35 anos e toda a família sempre vem visitá-la. Há cinco anos, quando decidiu deixar sua casa, seu conforto e suas companhias para viver no abrigo, não encontrou apoio dos filhos:

“Eles respeitam minha decisão, mas não queriam que eu viesse. Já me pediram pra voltar, já me disseram que iam comprar um apartamento, mas eu não quero. Eu quero viver minha vida aqui e deixar que eles vivam as deles”, afirma.
Mas tomar essa decisão não foi fácil. Dona Juraci conta que passou um ano pensando em como seria a nova vida. “Eu sempre trabalhei de voluntária em orfanatos, em asilos, em casa de leproso, tudo isso eu já fiz. E chegou uma hora que eu decidi que viria pra cá, mas me preparei”, conta. “Quando eu cheguei naquele portão e vi o abrigo foi diferente. Foi a primeira vez em que eu tive medo na minha vida”.


Juraci (Foto: Isabela Mercuri / Olhar Conceito)

Sempre levada pelo sentimento de liberdade, Juraci escolheu as grades do abrigo às grades familiares. Para ela, aquela missão estava cumprida, e precisava partir para a próxima. Juraci se casou aos 19 anos, adotou quatro crianças e vinte e dois anos depois seu companheiro faleceu. Com o conhecimento que adquiriu no grupo – o único arrependimento de sua vida foi não ter tido contato com esse conhecimento antes – descobriu sua missão na vida.

“Chega um ponto da sua vida e da sua espiritualidade que você não tem mais livre arbítrio. Você vai para onde você tem que ir. Hoje eu tenho que conviver com uma pessoa que me joga uma xícara de leite quente na cara e olhar pra essa pessoa com compaixão”, conta, lamentando o fato de a maior parte de seus companheiros no abrigo terem problemas mentais. Essa ideia de cumprir algo a que está predestinada é tão forte, que até mesmo as datas comemorativas ela prefere passar no abrigo: “Pra mim é um dia como qualquer outro. E eu penso que tenho que ficar aqui, dando apoio para os outros, mais do que ir para a casa da minha família”.

Neste domingo, dia das mães, seus filhos vem visitá-la. Realidade que não é a mesma da maioria dos moradores dali. “Não tem nada de festa aqui, é um dia normal. Muitos deles nem tem sanidade pra saber que data que é, muitos o pensamento já secou”, conta.

Para além dos que não se dão conta, Juraci já viu muito sofrimento: “Se tem uma coisa que eu falaria para os idosos, é pra se prepararem pra viver aqui. E se tem uma mensagem que eu passaria pros filhos, é pra preparar os pais. Eu já vi senhoras morrerem de tristeza porque foram deixadas aqui pelos filhos. Porque os filhos crescem, casam, a nora não gosta ou o genro não gosta e os idosos são esquecidos”.

Convivendo com tantas histórias, mas fazendo questão de não interferir na “experiência individual que cada um tem que passar”, ela só lamenta terem tirado a água com a qual regava sua horta:

“Eu tinha uma horta linda. Plantava ervas, temperos, cuidava direitinho. Um dia tiraram o encanamento da água que vinha pra eu usar. Passei duas semanas indo lá, olhando as plantinhas que me olhavam de volta pedindo água, até que desisti, parei de ir pra não ver elas morrendo”, lamenta. “Eu falo uma coisa pra você, pense duas vezes antes de tirar o sonho de uma criança, mas pense três antes de tirar o de um idoso. Quando eu vim pra cá, estava cansada porque não podia fazer nada em casa, meus filhos sempre me mandando descansar, ficar quieta. Quando comecei a cuidar dessa horta, eu renasci”.

Sem esse artifício, ela segue lendo os livros “quanto mais desconhecidos melhor”, acessando a internet via celular, vendo televisão e se reunindo, de vez em quando, com o grupo. Apesar de tantos netos, o dia das mães se torna apenas uma data – como tantas outras – em que ela acorda para cumprir sua missão e adquirir conhecimento.
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