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Sábado, 27 de abril de 2024

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Sofrimento velado

Entrevista Hypeness: Fotógrafa capta vítimas de violência sexual pelo Brasil

Foto: Ilana Bar

Entrevista Hypeness: Fotógrafa capta vítimas de violência sexual pelo Brasil
“Enquanto esse assunto for um tabu, mais e mais vítimas vão sofrer caladas“. A frase é de Ilana Bar, fotógrafa que sabe do que fala: nascida e crescida num sítio em Atibaia, interior de São Paulo, Ilana jamais passou pelas provações da violência sexual, mas viu suas consequências olhos nos olhos.

Em 2012, participou de um projeto com vítimas um pouco por todo o Brasil. Ouviu as histórias, salvaguardou as identidades e entregou as imagens para o Museu da Pessoa, demorando anos até ter coragem de as divulgar. O que ficou foi a sensação amarga de descobrir vidas marcadas pela violência, e uma certeza: “temos que falar mais sobre isso“.

Foi o que fizemos:

Hypeness (H) – Como surgiu a oportunidade de fazer este projeto?

Ilana Bar (IB) – Fui convidada pela fotógrafa Márcia Zoet para fazer em parceria com ela um trabalho para o Museu da Pessoa. O Museu estava fazendo um trabalho para o SESI, que era documentar histórias de participantes do projeto “Vira a Vida”. É um projeto (não sei se ainda existe) em que o Sesi dava uma bolsa de R$ 500, mais um curso de capacitação profissional, para pessoas que vivem em situação de risco. Em troca, os alunos se comprometiam a largar a prostituição. O projeto era destinado a jovens que sofreram violência sexual na infância (saiba mais aqui).

O trabalho do Museu era entrevistar alguns desses jovens, ouvir suas histórias durante a gravação de um vídeo/ entrevista. Após o depoimento, era a hora de fotografar. A entrevista era conduzida por uma historiadora do Museu [Fernanda Prado], e eu não entrevistei ninguém, mas estava presente durante toda a entrevista. Ouvi a história de todos.

Hypeness (H) – E onde ele foi feito?

O projeto acontecia em diversas cidades do Brasil, eu fui para algumas, Marcia pra outras. Passei por João Pessoa, Belém, Porto Alegre, São Luiz do Maranhão, Foz do Iguaçu. O desafio que tive foi para gerar imagens em que as pessoas não fossem identificadas, não poderia aparecer o rosto. Essas imagens com o rosto luz foi uma uma forma de o conseguir.

Fiz também closes, costas, contras luz , entre outras… mas essas para mim são as mais marcantes e fiz essa série, HV (sigla para “Histórias de Vida“).

H – Veio daí a necessidade de fotografar pessoas de um estrato social baixo? Porque sabemos que a violência vai além dessa fatia da população.

IB – Sim, é que a proposta do projeto era dar a bolsa e oportunidade de capacitação profissional para essas pessoas saírem da prostituição / situação de risco.

H – As imagens foram feitas em 2012, mas o problema se mantém e até se vem agravando. Por que é tão difícil mudar essa realidade?

IB – É uma realidade triste e dolorosa, principalmente pra quem passa por isso. Mas é um problema que não pode ser ignorado. Acredito que, para mudar essa realidade, temos que falar mais sobre isso, expor o assunto.

Guardei essas imagens por um tempo, com receio de mostrar e expor ainda mais os personagens, que já têm histórias sofridas, mas pensei que, enquanto esse assunto for um tabu, mais e mais vítimas vão sofrer caladas. O assédio sexual já é traumático em qualquer idade, mas quando criança é pior ainda, porque demora a entender o que está acontecendo.

Precisam [as crianças] saber que isso é crime e que não é culpa delas. A, a maioria das vítimas se sente culpada, acha que merece passar por isso ou que é algum castigo, tem a auto-estima muito baixa. É preciso conscientizar a sociedade que esse problema existe.

H – Fotografou homens e mulheres. Sentiu alguma diferença na forma como eles lidam com esse tipo de trauma?

IB – Acho que é um trauma grande e difícil, independente do gênero. Nem todos contavam a história, teve muitos que deram a entrevista inteira, contaram situações difíceis da vida, que chegaram a viver na rua, a trabalhar cedo, mas não contavam da violência sexual. É um assunto muito delicado que traumatiza qualquer um. Não é facil falar sobre isso. Eu mesma demorei anos pra divulgar essa série, com medo de falar desse assunto, e principalmente, de expor essas pessoas e causar-lhes algum mal maior, sendo que eu sei o quanto já sofreram na vida.

H – A vergonha muitas vezes leva a que as vítimas evitem a denúncia e escondam a realidade. Como encontrou as pessoas fotografadas? E como protegeu suas identidades?

IB – O SESI indicou as pessoas, a equipe do Museu ia ao encontro do personagem já sabendo um pouco do histórico. Preservei a identidade transformando o rosto em luz, mas sei que pode haver alguns outros elementos de identificação. Quero mesmo que ninguém seja identificado, mas, apesar desse receio, acredito que é uma necessidade social falar sobre isso.

H – Que histórias mais a impressionaram?

IB – Todas as histórias mexeram comigo. A gente nunca imagina a quantidade de histórias de abuso infantil que existem. É que as vítimas têm medo de falar, é um trauma muito grande.

Mas a história que mais me doeu de ouvir foi quando o agressor era o pai. A menina contou que foi abusada dos 8 aos 14 anos – todo dia ou quase todos os dias. Aos 14, ela conseguiu finalmente, em um período de férias, contar a uma tia sobre o assunto. Mudou de cidade, foi morar com a tia. Denunciou o pai, que foi preso por alguns anos e depois solto. A mãe acusava ela de ser “rapariga do marido dela”. Isso era triste de ouvir, a própria mãe ficou contra a menina e não esteve de acordo com a denúncia. Mas não dá pra julgá-la, também era uma mulher oprimida, não sabia dos abusos. Mas, pelo que a menina contou, o pai era muito agressivo e a mãe também sofria estupros semanais, e ela até diz que as vezes preferia que fosse com ela, que ela sabia que aí ia ser mais leve com a mãe. Essa menina passou por um grande trauma, demorou pra conseguir se relacionar com homens ou confiar em pessoas do sexo masculino, como médicos, por exemplo. É uma história dolorida, mas é incrível a força e o brilho que ela tem. Uma mulher de luz.

H – Qual o maior ponto comum que encontrou nessas vítimas?

IB – Baixa auto estima, só com uma exceção.

H – Que mecanismos as vítimas procuram para superar o trauma?

IB – Acredito que a superação é diferente para cada um. Alguns nem conseguiam falar sobre o assunto.

H – O que se aprende depois de um projeto desses?

IB – Que é preciso ficar atento com as nossas crianças e adolescentes, é um dever da sociedade protegê-los. Que abuso sexual na infância é mais comum do que imaginava. É uma realidade comum , mas não pode ser aceita.

H – As mulheres são as maiores vítimas, principalmente negras. Por que ainda é tão difícil combater o machismo e o racismo no país?

IB – Estudos mostram consistentemente que, independente do sexo da vítima, a grande maioria dos agressores é do sexo masculino e são conhecidos da vítima. A sociedade é patriarcal, muitos homens se sentem donos do sexo e do corpo da mulher. O que ela pode ou não pode vestir, a forma como “deve” se comportar e agir.

A luta da mulher é diária, quase todo dia sofre algum tipo de assédio, que muitas vezes é considerado “normal” pela sociedade. A liberdade é diferente pras mulheres, não temos o mesmo direito, andamos na rua com medo do assédio. Estou falando por mim, e sei que tenho privilégios, pois sou branca e de classe média.

A violência sexual na infância ocorre mais com mulheres, mas alguns homens também passam por isso. A maioria das entrevistas era sim com mulheres, mas nesse série tem uma travesti, dois homens, um deles ex-travesti. São histórias chocantes também. Um deles contou que era chantageado por um tio ou alguém próximo da família (não lembro ao certo) que havia descoberto que ele era gay e abusava dele sexualmente com chantagens de contar pra família a descoberta da sexualidade do garoto. Machismo, racismo e homofobia são o câncer da sociedade e matam.

Você pode conhecer melhor o trabalho da fotógrafa através do Flickr.

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