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O QUE TEMOS A COMEMORAR?

As ironias de se comemorar o dia da mulher: movimento feminista avalia a data; confira entrevista

08 Mar 2016 - 14:10

Da Redação - Paulo Victor Fanaia Teixeira

Foto: Reprodução / Facebook

Jéssica Fernandes Federici (à direita)

Jéssica Fernandes Federici (à direita)

Embora a data sirva para que muitos cavalheiros concebam elogios rasgados, regados a animações de rosas e corações em mensagens de Power Point, a celebração do 08 de março é bem menos romântica do que aparenta ser. O “Dia Internacional da Mulher” tem raízes tão profundas quanto trágicas. Por ironia do destino, a celebração é oriunda da lembrança de eventos que perturbariam boa parte (ou exata metade) das madames do Brasil de hoje: algo como mulheres feministas e comunistas da Rússia, no início do século passado. O momento para alguns é de reflexão sobre direitos da mulher e conquistas sociais em uma sociedade que estampa assustadores números em seus anuais “Mapas da Violência”. Não por coincidência, as negras são as maiores vítimas: registrando um aumento de 54% nas mortes violentas nos últimos dez anos. Em 2013, o Brasil registrou 50.320 casos de estupro (há quem diga que elas mereçam). Não menos repudiável, o número de tentativas é ainda maior: 527 mil no país, dos quais apenas 10% foram reportados à polícia em 2013. Diante do cenário em que cerca de 140 mulheres brasileiras são abusadas diariamente, o que temos à celebrar? Questiona-se Jéssica Fernandes Federici, do "Coletivo de Mulheres Filhas de Maria Taquara". Ela ainda fala sobre políticas sociais, machismo e a necessidade do movimento feminista. Confira a entrevista:

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Jéssica, qual a sua comemoração do dia 08?


Na verdade eu acredito que o que muitas de nós tentamos é ressignificar essa comemoração, o que temos a comemorar? Compreender que há uma disputa, eu diria de modelo de sociedade, onde um grupo reforça o papel conservador da mulher (subalterno intelectualmente e subjugado biologicamente) e outro que de diversas maneiras busca desconstruir os papéis e limites que foram impostos durante muito tempo, reforçando positivamente a capacidade das mulheres naquilo que lhes faz bem. O que me deixa um pouco feliz neste dia é saber que além de desconstruir papéis, muitas mulheres estão compreendendo que esse grupo interessado no papel conservador, que domina e explora mulheres, tem atendido algumas pautas para tentar manter-nos sob controle. Pois, apesar dos avanços, o que vemos são mudanças genéricas no trato dado às mulheres. É preciso compreender que mesmo quando pensamos em mulheres militantes, a estrutura social determina padrões do que é ou não tolerável e aceitável. Um exemplo grosseiro (mas tudo bem, rs), Valesca (Popozuda) dizer na grande mídia que é feminista, o comportamento dela ser copiado por muitas mulheres não altera a estrutura social, ao mesmo tempo que isso é usado para fomentar discussões intermináveis dentro do próprio movimento feminista. O que também nos faz pensar sobre porque não conhecemos mulheres como Carolina Maria de Jesus ou Lyudmila Pavlichenko.





 
Carolina Maria de Jesus (1914-1977) foi moradora da favela do Canindé, zona norte de São Paulo. Trabalhando como catadora, registrava o cotidiano de sua comunidade em cadernos que encontrava nos lixões. Ela é considerada uma das primeiras e mais importantes escritoras negras do Brasil. Lançou “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”, em 1960. Obra que foi relançada em três edições, com 100 mil cópias registradas (à época), traduzida para 13 idiomas e vendida em mais de 40 países.





Lyudmila Mikhailivna Pavlichenko (1916-1974), foi uma franco-atiradora soviética que atuou durante a Segunda Guerra Mundial. À ela foi creditada a morte de 309 soldados nazistas. É até hoje considerada a franco-atiradora mais bem sucedida na história. Depois da guerra, ela terminou seus estudos na Universidade de Kiev e começou uma carreira como historiadora. De 1945 a 1953, foi assistente de pesquisas do Chefe do Quartel-General da Marinha Soviética. Morreu com 58 anos e recebeu um navio russo com seu nome, em homenagem.






Qual o perfil das mulheres violentadas, estupradas e agredidas física e moralmente?

Traçar um perfil é de certo complexo, pois poderia ser refutado de diversas formas. À exemplo, segundo uma jurista da capital, os estupros ocorrem em maior número com mulheres brancas. Lembremos que estes dados são dos crimes denunciados, ora sabemos que a pobreza tem cor neste país. Portanto acredito que, assim como em outras estatísticas, as mulheres negras são as maiores vítimas de estupro, porém a burocracia, a banalização do crime por agentes públicos, entre outras questões fazem com que estas mulheres não denunciem. A violência contra as mulheres permeiam todas as classes, porém estou de acordo com Cecília Toledo, que diz que “a pobreza, o emprego precário, a mortalidade materna, a marginalidade são manifestações do cotidiano de uma classe, e uma mulher, nessas condições, vivencia o 'feminino' de forma diferente”, portanto os riscos aos quais está exposta por ser mulher, são além de diferentes, maiores.

O que podemos falar das políticas públicas de combate à violência contra a mulher?

São de muita valia, desde que colocadas em práticas, a "Casa da Mulher Brasileira", por exemplo, seria um espaço referência para que mulheres em diferentes situações (de violência ou não) encontrem, por meio dos direitos garantidos, à si mesmo e às possibilidades reais que toda mulher faz jus e, em meio ao retrocesso, vemos por exemplo a Secretária de Política para Mulheres virar um puxadinho, devido aos cortes do governo.

Fale mais sobre isso...

Precisamos compreender que a vida das mulheres não é oportuna ao governo, que trata de modo indiferente as mais diversas pautas. O corte na pasta foi de 22,8% mas se considerarmos a não implantação de diversos programas e leis, como centro de educação e ressocialização de agressores (previsto na Lei Maria da Penha) concluiremos que a falta de orçamento para garantir e avançar nos direitos das mulheres é muito maior.


A Lei n. 11.340, sancionada em 7 de agosto de 2006, passou a ser chamada Lei Maria da Penha em homenagem à mulher cujo marido tentou matá-la duas vezes e que desde então se dedica à causa do combate à violência contra as mulheres. A Lei estabelece que todo o caso de violência doméstica e intrafamiliar é crime, deve ser apurado através de inquérito policial e ser remetido ao Ministério Público. A lei também tipifica as situações de violência doméstica, proíbe a aplicação de penas pecuniárias aos agressores, amplia a pena de um para até três anos de prisão e determina o encaminhamento das mulheres em situação de violência, assim como de seus dependentes, a programas e serviços de proteção e de assistência social.


O conservadorismo e o machismo avançaram ou diminuíram nos últimos anos?


Sem dúvida há uma guinada conservadora ou neoconservadora, como algumas pessoas preferem usar, vez que este grupo precisou de retoques ao discurso, como o fato das mulheres trabalharem e sua posição diante disto. O machismo por si está sendo escancarado, não mensuro que tenha aumentado, o que aumentou é o número de denúncias, ainda que via redes sociais, de como atitudes rotineiras antes naturalizadas que agora passam a revelar o teor de negligência sobre a qualidade de vida das mulheres, com ênfase na violência psicológica e relacionamentos abusivos. Rose Muraro (descrição abaixo) nos faz pensar sobre a estrutura social quando diz que “é de tal modo hoje uma realidade bem-sucedida que muitos não conseguem pensar na organização da vida humana de maneira diferente da patriarcal, em que o macho domina de direito e de fato”, deste modo vemos ainda hoje pessoas (principalmente homens) com posições fervorosas contra a liberdade feminina.


Rose Muraro (1930-2014) foi uma escritora, intelectual e feminista brasileira. É autora de mais de 40 livros e também atuou como editora em 1600 títulos, quando foi diretora da Editora Vozes. Estudou Física e economia, foi escritora e editora. Publicou livros polêmicos, contestadores e inovadores dos valores sociais modernos. Nos anos 70, foi uma das pioneiras do movimento feminista no Brasil. Seu destaque é a obra: "A mulher no terceiro milênio: uma história da mulher através dos tempos e suas perspectivas para o futuro".



Como podemos comparar o machismo que afeta a mulher branca de classe média e o machismo que afeta a mulher negra e pobre?


Eu sou uma mulher branca e pobre, não me enquadro em nenhum dos perfis, o que posso dizer é que reconheço meus privilégios brancos, uma vez que algumas portas não me foram fechadas pela minha cor. O que compreendo é que os motivos são e, ao mesmo tempo, não são os mesmos que atingem essas mulheres. Nosso país ainda tem traços escravocratas que fazem com que as mulheres negras estejam na base da hierarquia social, agravado à falta de recursos, essas mulheres ainda hoje ocupam trabalhos subalternos de pouco reconhecimento (como os cargos de limpeza) e vivem a hiperssexualização de seus corpos, dentre outras expressões de machismo que afetam seu bem-estar. Eu acredito que as mulheres brancas de classe média já galgaram espaços a muito mais tempo e de certa forma ainda lutam para desconstruir o "dever ser" que as famílias lhes impõe.

Feminismo e Política:

Enquanto há uma criminalização do movimento de mulheres, existe um projeto de lei em tramitação na Câmara, de um deputado que quer com que algumas mulheres sejam obrigadas a abortar. Mulheres que são consideradas “em situação de risco”, cujos filhos provavelmente se tornariam marginais. E há até mesmo questões cômicas, como também existe um Projeto de Lei no Brasil, que busca proibir o uso de sutiã com bojo! Daí você vê a mentalidade dos nossos parlamentares. O Brasil, com uma crise política, econômica... E (você vê) como os homens e seus interesses conservadores ainda querem cercear a vida das mulheres em questões tão banais... ou ainda em questões importantes, como a legalização do aborto... 

Mulheres machistas:

Gostaria de colocar o quão complicado é falar de mulheres machistas: como essas mulheres reproduzem, por ignorância ou também pela compreensão de que o patriarcado é parte do sistema, sistema que beneficia algumas dessas mulheres.

Acho que existem dois “grupos clássicos”, digamos assim... (posso confiar de colocar isso de modo informal)... entendo que a violência contra a mulher existe em todas as esferas das classes sociais. Mas você pensar em violência doméstica na periferia, vejo que ela é estrutural, muitas vezes ligada ao uso abusivo de álcool, que é a maneira como o trabalhador cria seu escape da exploração do trabalho. Enquanto que nas classes média e média alta, a permanência da mulher na situação de violência é muito mais por status, pelo nome da família...

Que ironia! 

Gostaria de colocar a questão da ironia de se comemorar o “Dia internacional da mulher”. Pois existem livros que questionam o dia 08 de março. Ele na verdade foi um dia intitulado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1975.

E é importante a gente lembrar que durante a Ditadura Militar (1964-1985) os militares proibiram que as mulheres comemorassem o dia 08 de março, tanto é que existe o dia 30 de abril, como “Dia nacional da mulher”, que é meio que uma subversão... e aí, devemos pensar que o primeiro dia das mulheres foi comemorado em alusão à luta das mulheres russas, que mesmo depois, digamos, que a “vanguarda” colocasse que não era estratégico fazer greve naquele momento, as mulheres pararam. E efetivamente houve, digamos, uma vitória dos trabalhadores, graças ao modo como as mulheres se colocaram. Então as mulheres socialistas faziam essa comemoração que foi se propagando. A ONU sobre outras questões envolvidas, sobre que modelo defender, fez com esse dia se tornasse o dia de se lembrar das mulheres que foram assassinadas na fábrica, como mulheres frágeis, mulheres que precisam de proteção, e aí devemos compreender que nem mesmo esse dia da mulher ele é colocado como exatamente é. Apesar de que mesmo as feministas usam desse discurso das mulheres assassinadas nas fábricas, mas há algumas historiadoras que colocam a questão de que houve não apenas um incêndio, mas vários, que acabaram matando as trabalhadoras das fábricas têxteis, e não nesta data! Então, percebemos que há muita coisa envolvida no jogo...

Conclua...

Para mim, Jéssica, o sistema tem afogado e afundado as pautas das mulheres, principalmente, discretamente sob o argumento de “não conhecer”. Parece que ser feminista é só se assumir feminista. Não é que o feminismo seja uma cartilha, mas é preciso conhecer nossa história, por isso falo em Carolina de Jesus e em Ludymila. Porque são mulheres que de diferentes formas fazem parte de nossa história, e fazem com que outras mulheres, as mulheres do povo se sintam ainda mais empoderadas, quando elas têm acesso à vida destas mulheres. Muito obrigada!

"A história das mulheres tem sido marcada pela violência.
É essa violência que se relembra hoje.
É um dia de luta e denúncia, antes de ser de celebração.
Mas é também de celebração: por tudo o que já conquistamos e porque é importante honrar as vidas que se perderam pelo caminho!"
 
Empoderar: Conceder ou conseguir poder; obter mais poder; tornar-se ainda mais poderoso: empoderou o ditador com poderes irrestritos; "empoderou-se e cheia de confiança seguiu em frente" Figurado. Passar a ter domínio sobre sua própria vida; dar ou atribuir poder a: ela luta para empoderar as minorias; empoderou-se de coragem e seguiu em frente.
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