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Sexta-feira, 29 de março de 2024

Colunas

Uma história inventada sobre Piero della Francesca

Quando não sabíamos ler, eu e minhas irmãs passávamos nossas horas “de leitura” com nossos livros ilustrados. Já sabíamos a história de cor, - minha mãe costumava ler para nós -, mas mesmo assim gostávamos de inventar novos contextos para as imagens, uma história diferente, contada através das figuras do livro. É mais ou menos assim, distraidamente e ao sabor do alheamento, que pretendo escrever sobre Piero della Francesca. Essa relação pouco rigorosa que estabeleço agora se dá por duas razões: a primeira é que acredito que qualquer pessoa pode apreciar e refletir sobre arte, de qualquer tempo. Não importa, no sentido da “experiência”, que o sujeito que se debruça sobre uma obra saiba, isto é, seja instruído sobre história da arte, pintura ou desenho. Não pretendo, no entanto, negar que instrução aumenta a gama interpretativa e as possibilidades de caminhos a percorrer, mas intento, ao contrário, afirmar que as obras de arte são tão inesgotáveis quanto nós mesmos e sempre haverá fortuna crítica, novas interpretações, novas formas de ver e entender. A segunda razão diz respeito a estranha opinião de alguns sobre artistas como Piero della Francesca: de que são “primitivos” em sua maneira de pintar, como se ainda não soubessem desenhar de “verdade”, ou pintar “de verdade”, as coisas como elas são. Parece-me que isso talvez seja uma resposta à dificuldade que essas pessoas tem de lidar com o estranhamento sem ser de uma forma valorativa e progressista e de olhar para as coisas como são, ao invés de como “deveriam” ser. Escrevo, então, assim como um convite, não mais que uma apresentação à minha história inventada sobre a pintura Piero della Francesca.

A Flagelação de Cristo



A cena é bastante conhecida: Cristo sendo castigado pelos algozes e Pilatos o observa. No entanto, dessa vez, com um extraordinário domínio da perspectiva, o tema da Paixão parece ter menos importância, relegado ao fundo da pintura, muito atrás do pequeno grupo de homens à direita. Portanto, ignoro-a e volto-me ao três senhores reunidos em primeiro plano. Em minha vontade de narrativa, indago: “por que estão juntos?”, “do que será que eles estão falando?”. Meu olhar faz, então, imediatamente o percurso habitual, de face em face, tentando de algum modo ler ou reconhecer a atitude dos três senhores. Tento encontrar aquilo que Leonardo da Vinci chamou de “estado de alma” ou “da mente”. Refiro-me ao “Tratado de pintura” de da Vinci, mais precisamente “A fisionomia e a expressão dos afetos”, parte em que ele afirma que “o bom pintor tem de pintar duas coisas: o homem e sua mente”. É com estranhamento, porém, que me vejo incapaz de reconhecer e nomear “o que se passa na cabeça” dos três homens reunidos. Os “estados da alma” representados por Piero della Francesca têm uma característica de incognoscível, isto é, não são facilmente identificáveis com uma simples averiguação de sua fisionomia: o humor das figuras representadas não está declarado. Ao contrário, são indecifráveis, como que congelados em uma ação distraída, os senhores que ignoram a flagelação de Cristo parecem também ignorar minha investida e, mais ainda, uns aos outros. O olhar dos personagens da cena - importante para a composição por indicar um “caminho” através da pintura pelo qual o observador é capaz, por exemplo de desviar-se da mulher que amamenta para o bebê que ela carrega, seguindo simplesmente a indicação de seu olhar, - no caso dos três senhores da “Flagelação”, também nega para si essa tarefa. Não posso, deste modo, dirigir-me guiada pela direção da atenção daqueles homens. De fato, os três parecem brincar do jogo de estátua, esforçando-se para não piscar, prendendo o olhar em um lugar distante. Não posso deixar de imaginar que essas figuras irão mover-se assim que eu deixar de observá-las. Assim que me distrair, quem sabe, esses três homens rirão uns para os outros, felizes no jogo de esconder os segredos de Piero. Esse constrangimento de não ser capaz, como observadora acostumada às fisionomias explícitas, de traduzir com mínima reflexão os significados de um rosto, dá a minha observação das obras de Piero um ritmo peculiar. Existe, nesse momento de opacidade, uma pausa incomum, na qual me vejo interrogada. Reflito então sobre a possibilidade de haver, nas figuras de Piero, uma qualidade diferente de escolha expressiva: uma presença interior, que sutilmente se externa. Para mim, observadora anacrônica, o que se apresenta são três homens reflexivos, de atenção dupla: o olhar distante, é longínquo para fora de si, em um ponto de atenção externo, e ao mesmo tempo, em contrário, está profundo em si mesmo, distante do outro, presente internamente. A pintura então, me parece ser capaz de evocar ou provocar em mim, como por espelhamento, uma pausa precisa. De responder, mesmo tão antiga, a uma pergunta feita em outro tempo. É desse modo que é capaz de “atualizar-se” e estar “cada vez melhor”, porque em se tratando de uma obra de arte, seu fundamento de determinação não pode ser senão subjetivo e não depende de uma historicidade, de um contexto que a configure e explique. Uma pintura, então, não é objeto obsoleto, mesmo que sua “função” outrora tenha sido superada: uma obra sobre a flagelação deixa de ter o sentido de ilustração da Paixão de Cristo para ampliar-se em revisão. Por isso pode ser contemplada anacronicamente e seu “sentido original” deve importar muito pouco. A resposta que uma pintura é capaz de “doar” àquele que a observa, na medida única de suas interrogações, deve ser intuída, no sentido veiculado à raiz latina “intuere”, observada atentamente. (Em português, “intuição” perdeu a referência à “visão” contida no latim.). Nesse sentido, a atenção dirigida a uma pintura é também ambivalente, pois se comportando como espelho, para vê-la devo preenchê-la, investi-la.

Derrota de Cosroés



É em a “Derrota de Cosroés” que percebo mais intensamente essa presença interna que acusei na “Flagelação de Cristo”. Em cena, a batalha. À direita, o grupo que assiste à submissão do rei derrotado. Essa pintura, parte integrante dos afrescos de Arezzo, é uma curiosa cena de combate. Nela, no entanto, Piero della Francesca, grande conhecedor e tratadista da perspectiva, não faz uso da mesma, como o fez em “A flagelação de Cristo”. Ao contrário, o artista comprime os personagens da “Derrota” de tal forma que não posso deixar de sobressaltar que, mesmo nessas condições de proximidade – quase um amontoamento de figuras , pode-se observar aquilo que chamei de atenção dupla. Mesmo em uma situação que exigiria tamanha atenção ao mundo externo – imaginemos uma guerra: existem os perigos do inimigo, os amigos que desejamos socorrer, armas, cavalos, bandeiras... – os personagens continuam como que voltados para dentro.

Precisamente, chama minha atenção o homem que toca um instrumento de sopro. Ele, montado à cavalo, parece nem estar ali, mais preocupado em fazer soar sua trombetinha. Seu rosto está sozinho, emoldurado pelos dois cavaleiros de armadura, o que enfatiza seu estranho isolamento. O segundo detalhe é um grupo de três homens, ao centro, dentre os quais um é atingido no elmo e parece receber o golpe quase que pacientemente, em uma atitude estoica até, sem alardes e em grande concentração. Enquanto que os outros dois homens – o mais velho de barba e o jovem de rosto liso e elmo marrom – mesmo que em frente um ao outro, ignoram-se. Isso é um pouco do que Piero della Francesca representa pra mim: a história de um aperto de mão ignorado ou de uma situação do aceno de “oi!” que não era pra você.

*"Seja Breve" é a coluna quinzenal sobre arte de Leíner Hoki, 22 anos, cuiabana. Atualmente cursa belas artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte.

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