Olhar Conceito

Quinta-feira, 28 de março de 2024

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Rainer Maria Rilke: "Novos poemas"

Stéfanie Medeiros/ Olhar Conceito

Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos), este texto não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre estes artistas. Aviso feito, vamos à conversa de hoje.]

[Segundo aviso: aproveito o fato de morar na Alemanha para falar hoje e nas próximas semanas sobre autores de língua alemã e/ou autores brasileiros que tiveram alguma relação com a literatura em língua alemã. Ao final do intercâmbio voltarei à nossa literatura em língua portuguesa.]

Rainer Maria Rilke (1875-1926), um dos grandes artistas de todos os tempos, teve uma produção incrivelmente ampla para os poucos anos durante os quais ela se desenvolveu (Rilke morreu cedo, aos 51 anos).

Como já foi dito nesta coluna em outra oportunidade, os primeiros escritos de Rilke foram mais tarde rechaçados pelo próprio, tidos como ainda imaturos e pouco representativos da obra maior do autor.

Eu discordo (e todos temos o direito [às vezes o dever] de discordar dos próprios autores).

Ainda que essas pequenas obras iniciais não tenham a força e o vulto de "Os sonetos a Orfeu" ou "Elegias de Duíno", têm sim seu (grande) valor artístico. Já falamos nesta coluna, por exemplo, da "Canção de Amor e Morte do Porta-Estandarte Cristóvão Rilke” – uma das obras deixadas de lado por Rilke.

Sobre as ditas "grandes obras" rilkeanas também já falamos nesta coluna: sobre "Os sonetos a Orfeu” e sobre as “Elegias de Duíno”. Hoje conversaremos brevemente sobre "Novos poemas", obra que marca o início da maturidade e plenitude artísticas de Rilke.

Os "Novos poemas" foram escritos (ou primeiro concretizados/concebidos como esboço de livro e de ideal artístico conscientes) quando Rilke trabalhou como secretário daquele que, segundo Rilke, era o maior artista vivo: o escultor Rodin. Nem todos os poemas de “Novos poemas” foram escritos quando Rilke trabalhou com Rodin, mas todos foram (ainda que apenas na revisão) influenciados por ele.

Rodin ensinou o poeta Rilke a esculpir seus poemas, a usar as mãos e a se sujar tanto no mármore quanto no barro (da memória, aqui) para dali emergir com um poema novo, limpo e irretocável na palma das mãos. Rilke era, antes de conhecer Rodin, um poeta preso em sua torre; Rodin lhe abre a torre para que Rilke rale os joelhos no jardim e encare a vida como ela é (e será que há um "a vida como ela é", ou é tudo fumaça e jogo de luzes? Não sei sabe). O fato é que Rilke foi surpreendido com a notícia de que é, afinal de contas, um homem - o bicho homem, não o santo homem.

É claro que ele nunca foi (nem poderia ser) um poeta social ou engajado politicamente. Por isso digo que Rilke saiu da torre para o jardim - não para a metrópole, para o cortiço, para o puteiro. Um Rilke desse tipo, homem-integralmente-de-seu-tempo, fica só na imaginação de quem assim quiser imaginá-lo. Foi este – para uma parte significativa da crítica literária hoje – o grande pecado de Rilke: não engajar-se, manter-se afastado.

Mesmo assim, da torre ao jardim já há um grande movimento, e talvez Rilke só pudesse mesmo criar as obras irretocáveis que criou se mantivesse uma certa distância do homem cotidiano. Outros artistas precisam se aproximar do cotidiano, vide Drummond. Outros ainda, como Rilke, não. O fato é que ali, observando o homem à distância, Rilke criou uma das obras poéticas mais assombrosas e potentes da história.

Rodin, como eu dizia, educou as mãos de Rilke – e seu olhar. É bem provável que a influência de Rodin nele tenha sido mais forte do que aquela de qualquer escritor.

O "novo Rilke", o Rilke de "Novos poemas" era o poeta que andava pela cidade, que ia ao zoológico escrever sobre um bicho, que assistia a uma dançarina espanhola para escrever sobre a dança, que ia ao museu observar uma estátua. Rilke pode não ter se tornado um poeta das coisas palpáveis, mas aproximou-se delas. Prestou mais atenção às coisas palpáveis – mas sem nunca tirar os olhos do seu céu, que é só isso mesmo: o seu céu.

E que bom que assim o fez.

Para terminar a coluna de hoje, reproduzo aqui dois sonetos de Rilke – “A Pantera” em tradução de José Paulo Paes e “Torso arcaico de Apolo” em tradução de Manuel Bandeira.

A PANTERA
(No Jardin des Plantes, Paris)

Seu olhar, de tanto percorrer as grades,
está fatigado, já nada retém.
É como se existisse uma infinidade
de grades e mundo nenhum mais além.

O seu passo elástico e macio, dentro
do círculo menor, a cada volta urde
como que uma dança de força: no centro
delas, uma vontade maior se aturde.

Certas vezes, a cortina das pupilas
ergue-se em silêncio. – Uma imagem então
penetra, a calma dos membros tensos trilha –
e se apaga quando chega ao coração.

TORSO ARCAICO DE APOLO

Não sabemos como era a cabeça, que falta,
de pupilas amadurecidas. Porém
o torso arde ainda como um candelabro e tem,
só que meio apagada, a luz do olhar, que salta

e brilha. Se não fosse assim, a curva rara
do peito não deslumbraria, nem achar
caminho poderia um sorriso e baixar
da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.

Não fosse assim, seria essa estátua uma mera
pedra, um desfigurado mármore, e nem já
resplandecera mais como pele de fera.

Seus limites não transporia desmedida
como uma estrela; pois ali ponto não há
que não te mire. Força é mudares de vida.

*A coluna Rubrica, publicada todas as segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista. Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).



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